O mundo está doente da memória
Só quem não faz ideia do horror que a II Guerra Mundial foi pode brincar com a ideia de acicatar grupos de humanos uns contra os outros.
Para um historiador, um pormenor particularmente inquietante do atentado terrorista que matou 50 pessoas e feriu outras 50 em duas mesquitas de Christchurch, Nova Zelândia, estava escrito a tinta branca nas armas usadas pelo assassino: datas, datas e mais datas de acontecimentos históricos; nomes, nomes e mais nomes de personagens históricas. Da Batalha de Lepanto em 1571 ao Cerco de Viena em 1688, da Batalha de Poitiers em 732 ao Cerco de Acre em 1189, o assassino tinha as armas saturadas de referências históricas.
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Para um historiador, um pormenor particularmente inquietante do atentado terrorista que matou 50 pessoas e feriu outras 50 em duas mesquitas de Christchurch, Nova Zelândia, estava escrito a tinta branca nas armas usadas pelo assassino: datas, datas e mais datas de acontecimentos históricos; nomes, nomes e mais nomes de personagens históricas. Da Batalha de Lepanto em 1571 ao Cerco de Viena em 1688, da Batalha de Poitiers em 732 ao Cerco de Acre em 1189, o assassino tinha as armas saturadas de referências históricas.
O que quer isto dizer? Em primeiro lugar, comecemos por notar que esta fixação pela história por parte de um terrorista islamofóbico é também um dos traços recorrentes do terrorismo islamista. Também o ISIS saturava o seu discurso com referências a batalhas e às suas datas. Muitas vezes as mesmas, precisamente porque se tratam de episódios nos conflitos medievais e modernos entre muçulmanos e cristãos que estes fanáticos anseiam por recriar hoje em nome das suas insanas obsessões com o atear do rastilho a uma “guerra de civilizações”.
Arrisco o palpite de que se disséssemos ao terrorista de Christchurch que ele não é mais do que a versão simétrica dos terroristas do ISIS ele não se chocaria nem ficaria desagradado: pelo contrário, ele investiu o sentido da sua vida exatamente no mesmo objetivo que o ISIS descrevia como o de acabar com a “zona cinzenta” onde pessoas de religiões diferentes convivem pacífica e até amistosamente. Para ele, matar inocentes para provocar retaliações é uma tática de eleição, particularmente numa época em que o ISIS está sem fôlego; se lhe acontecer trazer o terrorismo islamista de novo à vida o terrorista islamofóbico ficará provavelmente contente. Parece contraditório mas claro que não é, porque aquilo que ele vê como maior perigo não é na verdade o “inimigo”: é antes toda a gente de paz e tolerância, de todas as religiões e origens, que não têm senão desprezo pelos terroristas de ambos os lados. Somos nós. Por isso acertou tanto a primeira-ministra neozelandesa ao referir-se às vítimas do atentado dizendo “eles somos nós”, e por duas razões: porque é preciso combater o discurso do “nós contra eles”, e porque todos aqueles que combaterem o discurso do “nós contra eles” se tornam imediatamente obstáculos no pensamento do fanático.
Quando vi as armas do ataque e li excertos do “manifesto” do terrorista soube imediatamente o que estava a ler: as palavras de um imitador de Breivik, o terrorista de extrema-direita norueguês que ceifou a vida de mais de 70 jovens na ilha de Utøya. No verão de 2011 passei vários dias lendo o “compêndio” que Breivik publicou, no qual descobri que eu era um indivíduo que ele certamente consideraria um “traidor de categoria B” (“políticos multiculturalistas, parlamentares europeus, escritores, conferencistas” a punir com execução e expropriação). Na altura escrevi-o para este jornal: aquela ideologia provocaria seguidores. Agora aqui está.
Que ideologia é aquela? Estamos a falar de algo semelhante mas não exatamente igual ao nacionalismo que tanto tem intoxicado a política mundial nos últimos anos. De semelhante tem o egoísmo coletivo elevado a princípio cimeiro da política: para esta gente o mundo é um jogo de soma zero em que para uns ganharem outros têm de perder. De diferente tem que estes “uns” e “outros” não são necessariamente nações. Tal como para o ISIS, que não acredita em nações (supostamente invenções dos homens e não de Deus) e investe toda a ideia de soberania na “umma”, ou comunidade dos fiéis muçulmanos dirigida por um califa, os terroristas de Utøya e Christchurch são apóstolos do racismo violento. Note-se que o terrorista de Christchurch não era neozelandês, mas sim australiano e para ele atravessar a fronteira para matar gente noutro país não lhe dizia nada. Para ele o impulso racista é superior ao impulso nacionalista. Nós já vimos isto antes; era a ideologia de Hitler.
E aí voltamos à questão das datas e das obsessões históricas de gente historicamente ignorante que pulula nas catacumbas da Internet e das redes sociais.
Há muito que estou convencido que na raiz de muitos dos nossos problemas está um problema de memória: à medida que as catástrofes do passado se vão afastando das lembranças dos vivos e que as sociedades não são capazes de reproduzir um discurso cívico sobre o nosso passado comum, mais vemos a memória ser substituída por mitos em que gente leviana se projeta como se fossem heróis reincarnados. Só quem não faz ideia do horror que a II Guerra Mundial foi pode brincar com a ideia de acicatar grupos de humanos uns contra os outros. Só quem não sabe o mal que as teorias da conspiração fizeram no passado pode hoje propalar mitos sobre os “globalistas” ou “a grande substituição de populações” que são bem mais nem menos do que as versões contemporâneas das ideologias que levaram ao Holocausto.
A solução para isto passa por recuperar a memória verdadeira e rigorosa do passado. Mas tem de ir mais longe do que isso: passa por um discurso para o futuro que demonstre que há mundo para todos; que a humanidade é só uma; e que verdadeiros heróis são os que promovem a tolerância e o cosmopolitismo. Só assim conseguiremos impedir que jovens substituam a memória por mitos e matem e morram em nome de batalhas de há séculos e milénios que nunca foram heróicas.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico