Transformismo: aos sábados à noite, Diogo é Klyt oris

Hoje em dia, por todo o mundo, a arte do transformismo enche bares e discotecas. Perucas, vestidos e saltos altos fazem nascer novas personagens. Do quarto de Diogo Diez saiu Klyt oris, que todos os sábados à noite se dá a conhecer em bares no Porto.

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Sara Sofia Gonçalves e Fernando Gabriel

Drag queen é a desconstrução de género”, atira, certeiro, Diogo Diez. Com poucas palavras, define uma das suas paixões. Vive em Guimarães e, aos 21 anos, tem um emprego estável na sua área, como assistente de styling na Farfetch. Mas todos os sábados à noite, a 55 quilómetros de distância, ele é Klyt oris, a personagem que encarna em vários espaços nocturnos do Porto.

Hoje em dia, por todo o mundo, a arte do transformismo enche bares e discotecas. Transformam-se a si e transformam a vida nocturna das cidades. É um fenómeno em crescimento, à boleia de nomes como RuPaulSharon Needles ou, no caso de Portugal, Stefani Duvet. E hoje, no Pérola Negra, as luzes estão viradas para elas, as drag queens que irão actuar dentro de momentos. Ao som de Beyoncé, Klyt oris faz a sua actuação até ao cair do pano. As luzes do palco fazem sobressair a roupa cuidadosamente escolhida para aquela performance. O público, eufórico, aplaude e reage aos movimentos de dança mais arrojados.​ Tudo acaba, um par de horas depois. Para a semana haverá mais. 

Dez horas antes, ao cair da tarde, Diogo recordava a sua infância, enquanto fumava um cigarro na varanda do quarto. Foi com 16 anos que descobriu um mundo novo. Nessa idade, a falta de informação fazia-o crer que as drag queens, "das duas uma: ou eram travestis ou homens que queriam ser mulheres, mas não tinham coragem de sair à rua no seu dia-a-dia como mulheres”. Cinco anos depois, também ele passou a vestir-se exageradamente de mulher.

Sentado na cama, Diogo desconstrói a identidade recém-criada. Fala por duas pessoas que apenas se encontram nas noites de sábado. “Não sinto a Klyt oris como uma personagem, eu acho que ela é o excesso da minha personalidade.” O alter-ego nasceu há pouco mais de um ano, naquele mesmo quarto. Não existe em pessoa, mas habita nas perucas, na roupa e na maquilhagem. “Se eu tiver de ir à padaria de saltos altos buscar pão, eu vou, na boa.”

Antes de Klyt oris, existiram outras. Miss Passo Fome e Valentina foram outras faces de Diogo que já não existem. Com esta nova personagem, o jovem encontrou uma ligação mais forte: “Se eu tiver bêbedo sou completamente Klyt oris, não sinto muita distância entre o Diogo e ela.”

Criar um novo alguém envolve outras questões em que Diogo teve de pensar. Implica o processo criativo de definir a personalidade de uma personagem que num momento não existe, noutro nasce e, por fim, morre. O que vestir, como falar, andar, apresentar — tudo tem de ser pensado. A partir daí, é aprender a viver em harmonia com alguém dentro de si.

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Vencer os estereótipos

Com o aparecimento desta arte cresce também o preconceito e, com ele, a discriminação. Diogo frisa que é homem, veste-se de drag, “mas isso não tem interferência no género”. Os dados em termos desta matéria ainda são poucos, mas a desinformação é muita. Crescem os estereótipos em relação à ideologia de género e orientações sexuais e, diz o artista, existe muito analfabetismo sobre o assunto. Para Diogo, as drag queens ainda são estereotipadas, em muitos casos, como “drogadas, travestis e travestis que se prostituem”.

A arte do transformismo não é nova, mas só se popularizou há pouco tempo. A questão da não-aceitação surge pela falta de informação, principalmente em Portugal. Nos Estados Unidos da América, as drag queens são cantoras, apresentadoras, modelos e actrizes. O sucesso do programa RuPaul’s Drag Race educou parte da população para as figuras que se criam nos espectáculos de drag. Por aqui, a falta de divulgação cria barreiras à tolerância.

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No ano de 2018, a plataforma de streaming Netflix produziu uma série de animação intitulada Super Drags, destinada a maiores de 16 anos. A trama consistia em três super-heroínas drag queens que tinham o objectivo de reunir a comunidade LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo) para salvar o mundo. O anúncio da produção causou polémica, principalmente no Brasil, país onde a série foi produzida. Instituições religiosas e a comunidade mais conservadora consideraram que, por ser uma série de animação, iria “influenciar sexualmente” os mais jovens. Este é um exemplo dos muitos casos de discriminação e preconceito que ainda existem acerca destes artistas.

Não é fácil contar aos outros. Diogo não vive sozinho e a primeira vez que se vestiu com roupas femininas foi no Dia Das Bruxas. “A reacção da minha mãe foi começar a chorar por preocupação”, recorda. Passado um ano, a família teve tempo de se adaptar e, hoje, Klyt oris é uma presença habitual em casa. “A minha família, amigos e namorado [reagem] na boa. Vem muito pela educação, eu habituei-os.” 

De Diogo a Klyt oris

No canto do quarto encontra-se uma mesa, um espelho e uma cadeira. Sentado, Diogo olha-se ao espelho. As suas mãos dançam por pincéis, sombras e bâtons — são os “instrumentos necessários” para o nascimento de Klyt oris.

A transformação começa após mais um cigarro. Diogo concentra-se. Durante o processo, é curto o diálogo entre o transformista e quem o observa. As cores são o que mais caracteriza esta personagem feminina e Diogo procura qual a que melhor reflecte o que Klyt oris quer transmitir no espectáculo de hoje. A escolha recai no azul.

A maquilhagem é a ferramenta mais importante no universo drag. Nela, os artistas vêem uma forma de expressarem a sua excentricidade, com exagero e exuberância. Diferentes cores, diferentes adornos, diferentes linhas e contrastes que se conjugam na mesma pessoa. Na semana seguinte, tudo será diferente. As sombras vistosas delineiam traços excêntricos, enquanto isso Diogo desenha também o futuro da sua personagem: “A Klyt oris faz-me bem até eu me cansar dela.” 

Chega, então, a hora de tratar do cabelo. Enquanto coloca cuidadosamente a peruca, Diogo revela: “A minha mãe comprou a minha primeira peruca”, reflectindo, mais uma vez, na grande aceitação por parte da família. As jóias são o último passo antes de escolher a roupa. Do pescoço para cima, Klyt oris já existe.

Quando chega a hora de decidir o que vestir, estendem-se, pela cama, diversas hipóteses. Entre vestidos, saias e saltos altos, o que sobressaiu do arco-íris de roupas foi um vestido vermelho e um par de botas da mesma cor, com saltos que a maioria não se atreveria a usar. Klyt oris, porém, está segura em cima delas, tal como Diogo está seguro de si mesmo: “Nunca fui uma pessoa insegura.” 

Nota-se, basta ver Klyt oris em palco para o perceber. Foi mais um sábado em que Diogo mostrou ao mundo quem verdadeiramente habita em si. No caminho para casa, desabafa: “Quando tenho uma festa, todos os dias a seguir arrependo-me, mas volto sempre a querer ‘montar-me’. São dores de cabeça, costelas, pés, mas eu amo o que faço.” É a arte do transformismo.

* Estudantes de Jornalismo na Universidade do Minho 

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Sara Sofia Gonçalves e Fernando Gabriel