Bares de alterne, futebol e fado onde o negócio da noite começa de tarde
É ainda à luz do dia que na rua de Cimo de Vila, no centro histórico do Porto, abrem alguns estabelecimentos que ainda resistem. Noutros tempos, o negócio da noite só ali acabava de madrugada.
Na praça da Batalha, onde está o teatro Nacional de São João, na esquina com um hotel de quatro estrelas, muito perto do carismático Gazela, que serve os já internacionais cachorrinhos, entra-se para o topo da Rua de Cimo de Vila. Como em vários pontos do centro histórico do Porto, esta rua que desce em direcção à Estação de São Bento, com passagem pela Loureiro, não escapou à invasão de turismo dos últimos anos.
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Na praça da Batalha, onde está o teatro Nacional de São João, na esquina com um hotel de quatro estrelas, muito perto do carismático Gazela, que serve os já internacionais cachorrinhos, entra-se para o topo da Rua de Cimo de Vila. Como em vários pontos do centro histórico do Porto, esta rua que desce em direcção à Estação de São Bento, com passagem pela Loureiro, não escapou à invasão de turismo dos últimos anos.
Apesar dos vários edifícios ocupados por alojamento local para turistas, continua a conservar a aura pitoresca e popular. Mais do que isso conserva grande parte dos estabelecimentos de diversão, que lhe garantiram a fama durante várias décadas. Gastos pelo tempo, quais museus do deboche, os bares de alterne de Cimo de Vila ainda fazem parte do cenário de grande parte daquela artéria onde o sol não entra.
Nalguns cafés e tabernas que ali existem ainda se lava a louça do almoço. Ao descer aquela artéria esguia, desde a praça da Batalha, ouve-se um rasto auditivo deixado por uma selecção musical difusa, que sai de vários estabelecimentos e se encontra na rua. Não há portas fechadas. Apenas uma cortina que deixa passar os tons berrantes dos sistemas de luzes em movimento separa o interior do espaço do passeio estreito.
À porta dos três primeiros, na zona superior, estão algumas mulheres a queimar alguns cigarros enquanto o tempo se esfuma. Passo dado para dentro de um deles e há logo quem se aproxime. Não passa um minuto sem que alguém pergunte: “Pagas um copo?”.
Aproveitamos o convite para iniciar uma conversa. Não querem revelar identidades nem a imagem, mas não se opõem a uma conversa informal. Todas as mulheres têm família. Dizem que é uma profissão como as outras, mas ainda há quem não a veja com bons olhos. Se elas não se importam com isso, ainda assim preferem proteger os familiares.
Contam como a vida as levou até ali, ao ponto de não se lembrarem de alguma vez terem feito outra coisa senão repetir a mesma rotina ao longo de anos de trabalho todos iguais. Grande parte já ultrapassou os 60 anos de idade. Conhecem os clientes pelo nome e reparam quando alguém ali entra pela primeira vez. Muitas das caras conhecidas deixaram de as ver. Há vários que já faleceram.
Trabalham para “entreter” quem ali vai. Dançam, bebem “copos” e animam a casa. Mais do que isso está reservado à esfera privada. Dizem que depois do trabalho e fora dali fazem o que lhes apetece. Se há troca de favores sexuais por dinheiro? Há quem assuma que sim. Muitas vezes vão só jantar com alguns dos “amigos”. Há quem retribua o favor com “mais algum”.
No passado, Cimo de Vila era “o fim do mundo”
Actualmente existem seis casas de alterne em Cimo de Vila. Diz José Nunes, 76 anos, proprietário do Portista, um dos bares mais antigos, que dantes a rua estava pejada de gente. “Era o fim do mundo”. No espaço do qual é proprietário há perto de 40 anos já só trabalha uma pessoa, também com mais de 60 anos.
No primeiro dia em que o PÚBLICO lá passou preparavam-se para jantar – o dono, a companheira e a funcionária. É ali, numa das salas do bar, que almoçam e jantam, quase à hora do lanche. Naquela rua a animação começa ainda a noite não se pôs. Diz que há comida que chegue para todos e cadeiras suficientes, mas a conversa fica adiada para outro dia.
Um altar ao Futebol Clube do Porto
Quando lá regressámos, a hora de não interromper o repasto, percebemos que nas paredes do estabelecimento não há espaço para colar nem mais um póster do clube de maior dimensão da cidade. Entre calendários com algumas mulheres seminuas, há imagens dos vários planteis da equipa do coração do proprietário e quadros com o emblema.
“Quando aqui cheguei, há mais de 40 anos, a primeira coisa que fiz foi pintar as paredes de azul e branco”, recorda. Não será o cenário que se espera num bar deste género, nem a melhor combinação com os sofás de veludo vermelho.
Na verdade, o nome oficial do estabelecimento é Parreira do Douro. Mas, por razões óbvias, os clientes conhecem-no por Portista. Não foi o primeiro proprietário da casa. Antes disso era uma casa de pasto. “Era mais difícil seguir esse ramo, por isso optei por este”, conta.
Entrou neste negócio logo depois de ter cumprido o serviço militar. Lá, conheceu um alferes que tinha uns bares do género em Lisboa. Por convite do colega foi trabalhar para a capital. Só mais tarde mudou-se para o Porto.
José Nunes nasceu em Lustosa, Lousada. “Quando aqui cheguei era um totó”, diz, ainda que já tivesse contactado com esta realidade na capital. Teve um café “onde paravam prostitutas e azeiteiros”, perto de Cima de Vila, e mais tarde alugou o único estabelecimento que ainda gere, aos 72 anos.
Para ser mais exacto, afirma que é a companheira com quem está desde essa altura que opera todas as funções de gestão. “Nunca interferi com a escolha das meninas. É ela quem contrata e quem despede.”
Bons costumes não eram entrave antes da Revolução
Noutros tempos, trabalharam 18 colaboradoras no Portista. Hoje só lá está uma funcionária. Diz que o melhor período para o negócio foi precisamente antes da Revolução. “Antes do 25 de Abril, toda a gente fazia dinheiro”. E o preconceito? “Qual preconceito? Saíam do comboio em São Bento e era tudo a vir cá para cima. Os bons costumes não impediam que cá viessem. Isso era tanga”, garante.
Até à década de 1980 e final de 1990 o negócio manteve-se estável. “De há uns anos para cá decaiu”, afirma. Nessa altura, “a rua estava apinhada de gente até às tantas da manhã”, recorda. Está reformado, mas continua com o negócio. Fá-lo porque tem um neto na faculdade. “Fico cá até ele terminar os estudos.”
Não há o movimento que havia há uns anos, mas há uns tempos teve a casa cheia, quando uma banda de Gaia, os Conjunto Corona, que exploram o universo mais obscuro e pitoresco da cidade do Porto, foram lá apresentar um dos álbuns que lançaram. “Nesse dia não sobrou uma cerveja na arca”, conta. Há também uma “malta” de Belas-Artes que já lá foi fazer uns espectáculos.
Alternar com o fado
Um pouco mais abaixo, na entrada do Caves de São João, há um letreiro que anuncia tardes de fado. Lá dentro, a um dia de semana, a música que passa, próxima do arraial popular, está longe de se parecer com a canção de Lisboa.
A proprietária, Otília Meneses, 61 anos, acompanhada por duas “meninas” com mais de cinquenta anos, diz-nos que o letreiro não está ali por acaso. É dona do estabelecimento há cerca de 30 anos, mas só há quase 25 anos é que o gere. Quando ali chegou pouco percebia do negócio, mas decidiu assumir o leme. “Foram as meninas que me ensinaram tudo”, conta. Naquela altura, eram 12. Hoje estão lá três.
Afirma que não tem qualquer problema em assumir qual é a actividade que leva a cabo no espaço que gere e que as funcionárias estão ali de livre vontade. “Dantes havia quem andasse nisto por obrigação. Hoje é uma opção”, afirma, acrescentando saber que há casos muito diferentes.
Não são muitos os clientes que hoje continuam a frequentar o espaço. “Temos os antigos e há muitos turistas que entram por achar engraçado e dançam e pagam copos às meninas”, diz. Já noutras alturas era diferente: “Havia muita gente que ficava até às 4 da manhã, até à rua do Cativo, perto da PSP, com muitas casas abertas e todas elas cheias. Havia negócio para toda a gente.”
Hoje, o negócio continua a fazer-se, lentamente, durante o dia, desde as 15h em diante, mas “são poucos os resistentes”. “Aqui, o negócio está em crise. Só quem paga rendas muito baixas é que resiste”.
Ali, como noutros espaços do género daquela rua, os clientes pagam 3,5 euros por uma cerveja. Otília, diz que não é “alternadeira” e que nunca pediu a ninguém para lhe pagar copos. “Esse é o trabalho das meninas”. Porém, havia muitos que estavam interessados “na dona que está atrás do balcão”. Nos primeiros tempos recusou, mas depois, “se ofereciam”, também fui aceitando. “Tenho dois filhos para criar”, diz.
De há uns anos para cá, a maior fonte de rendimento não tem tanto a ver com a actividade principal do bar. Aos domingos, o espaço está reservado para tardes de fado que organiza. “Nesse dia, não entram cá meninas”. A casa, decorada com algumas fotos dessas sessões, torna-se “pequena demais” quando isso acontece.
Na maior parte são turistas que ali vão. “De boca em boca foram passando a palavra”, diz. Conta que não só de fado vadio se faz o programa. Também vai ao fado-canção e à poesia. A própria Otília também canta o fado e é costume subir ao palco improvisado.
Tem o sonho de “aos poucos” poder transformar o espaço exclusivamente numa casa de fado: “Passo a semana toda à espera que chegue domingo.”