Odemira já mal respira sob o plástico das estufas
A ocupação do concelho por culturas intensivas está a exercer pressão, não só sobre os recursos naturais, mas também sobre as infra-estruturas, incapazes de dar resposta a tantos migrantes.
Passados que estão 30 anos do início da implantação do modelo agrícola projectado pelo empresário francês Thierry Roussel, o debate sobre o impacto ambiental e social das culturas em estufa, no concelho de Odemira, mantém-se. Movimentos cívicos, associações de defesa do ambiente, o cidadão comum e a autarquia persistem em manifestar publicamente a sua preocupação pelas consequências que são manifestas na preservação da biodiversidade no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) e na comunidade local. A pressão é crescente e o concelho não está a conseguir dar resposta à vaga de imigrantes, assim como receia as consequências deste modelo agrícola na água, ar, solo e biodiversidade.
Entre 1988 e 1994, Thierry Roussel cobriu de plástico 550 hectares para a produção em estufa de frutos vermelhos e de outras hortícolas, recorrendo à utilização maciça de fertilizantes químicos e pesticidas. O resultado final deste modelo agrícola, que foi apresentado como inovador e que prometia trazer trabalho e riqueza à população local, acabou por deixar um passivo ambiental que foi difícil de superar. Além disso, foram despedidos cerca de 600 trabalhadores quando a empresa faliu e ficou por cobrar uma dívida de milhões de euros ao erário público. O fantasma desta experiência agrícola, instalada no Perímetro de Rega do Mira (PRM), prevalece no presente, mas com outros protagonistas.
Nos dias de hoje, o receio de ver o concelho de Odemira transformado na Almería (zona espanhola de agricultura intensiva) do Alentejo permanece, como ficou patente na reunião da Assembleia Municipal (AM) extraordinária de Odemira, realizada no final do ano, para debater um ponto único na ordem de trabalhos: “Actividade agrícola na área do perímetro de rega do Mira e no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.
A acta desta reunião, recentemente aprovada e a que o PÚBLICO teve acesso, é um extenso repositório de preocupações quanto aos impactos que a ocupação do território de Odemira com base na produção em estufa causa no ambiente do PNSACV e na qualidade de vida das pessoas que ali residem.
O presidente da Câmara de Odemira, José Alberto Guerreiro (PS), começou o debate enumerando os constrangimentos que mais se acentuam na comunidade: “O território não tem capacidade para acompanhar as exigências da nova agricultura na oferta de habitação aos imigrantes, de infra-estruturas, de desenvolvimento social, de articulação cultural, de aumento populacional em tão curto espaço temporal.”
E destacou que a situação pode descambar para o insustentável se os agricultores continuarem a pretender trazer para o território “mais pessoas” sem que sejam “criadas condições para que possam permanecer”. Referindo-se aos problemas relacionados com a saúde, lembrou que o acesso aos cuidados médicos “já se torna difícil para a população residente”. E, no actual quadro de dificuldades, o aumento no fluxo de migrantes “irá agudizar o problema”, adverte o autarca, dando como exemplo o elevado número de “processos de aborto no Centro de Saúde de Odemira, maioritariamente de cidadãs migrantes”.
A pressão sobre as infra-estruturas potenciada pela cada vez maior população migrante estende-se à educação. As escolas do concelho “não estão adaptadas para receber tantas crianças e jovens, com outras nacionalidades, línguas, culturas e currículos diferentes”, sublinhou o autarca, realçando as “dificuldades de integração” de milhares de pessoas, o que coloca a nu um “claro problema social que urge resolver”. No Plano Municipal para a Integração de Imigrantes no Município de Odemira reconhece-se um outro problema: “Pouco se conhece sobre a imigração a nível local. Sabemos que existe, mas não a conseguimos quantificar.”
Na faixa do território de Odemira onde incidem as culturas intensivas em estufas, abrigos, estufins ou túneis elevados e ao ar livre, “já existem cerca de 16.000 habitantes”, alertou José Alberto Guerreiro, preocupado com a pressão das empresas agrícolas para contratar mais imigrantes, superando “os limites actuais de residentes.”
As preocupações expressas pelo presidente da Câmara de Odemira foram corroboradas por Francisco Lampreia, presidente da Junta de Freguesia de Vila Nova de Milfontes que manifestou na AM a sua discordância em relação à posição da Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur (AHSA) por pretender alargar a área de produção “de 1600 hectares para 3600 hectares”. Se vier a consumar-se um tal propósito, “aumentará quase para o triplo também a necessidade de mão-de-obra”. As consequências do descontrolo populacional já se revelam em Milfontes, onde “é impossível encontrar habitações para alugar” porque as casas encontram-se “ocupadas por migrantes”, em condições por vezes chocantes, e sem que haja “fiscalização por parte das entidades” competentes, critica o autarca.
Pressão sobre o ambiente
Também o Relatório do Grupo de Trabalho do Mira (GTM), constituído em Agosto de 2018, para avaliar a compatibilização da actividade agrícola no Perímetro de Rega do Mira com a biodiversidade, os recursos hídricos, a gestão do território e o ordenamento do PNSACV, revela o mesmo tipo de preocupações.
Essa avaliação conclui que ocupação actual, com todo o tipo de culturas cobertas no PRM, foi “estimada” em cerca de 1200 hectares, cerca de um terço face à potencial área de 30% daquele perímetro de rega que está destinada às culturas intensivas — 3600 hectares nos 12.000 que ocupa a zona agrícola do Mira.
Esta realidade, prossegue o relatório, “representa hoje a existência entre 6000 a 8000 trabalhadores agrícolas no concelho de Odemira”, na sua esmagadora maioria imigrantes. Tomando em linha de conta a pretensão da AHSA, o GTM adverte para a necessidade de “estabilizar regras, que salvaguardem a compatibilização dos valores naturais com a actividade agrícola”, frisando que os “efeitos territoriais e sociológicos não podem ser ignorados”.
Colocando como eventual limiar teórico de 10 trabalhadores agrícolas por hectare, para assegurar a actividade agrícola em 3600 hectares de área coberta terão de ir para Odemira um total de 36.000 imigrantes, “número que manifestamente o território não comporta”, conclui o relatório do GTM.
Nuno Simões, presidente da AHSA, reagiu a estas chamadas de atenção, com uma pergunta: “Fará sentido limitar, directa ou indirectamente, o acesso de pessoas que venham para o território realizar trabalho, contribuir para o desenvolvimento e para a criação de riqueza, bem como para a qualidade de vida das pessoas que cá estão?”. E comentando as conclusões do grupo de trabalho e o teor das intervenções críticas que iam sendo feitas no decorrer da assembleia municipal, o presidente da AHSA assumiu que os associados da organização a que preside, “não concordam com os limites que venham a ser impostos” à contratação de imigrantes, considerando que as entidades públicas “tinham de ser mais ambiciosas” na promoção e desenvolvimento das culturas baseadas dos frutos vermelhos (framboesas, mirtilos e amoras).
Referiu ainda que tinha consciência de que não se devia transformar o concelho de Odemira “numa Almería”, mas também “não concorda que se restrinja a actividade agrícola numa zona onde existem os melhores valores agrícolas do mundo para a prática de culturas modernas”.
Na resposta, o presidente da câmara disse que os representantes da AHSA se “contradizem” quando referem que não pretendem transformar o concelho numa “Almería” mas “solicitam o alargamento da área de ocupação da actividade agrícola.”
Receios com a poluição
Outra das críticas feitas por José Alberto Guerreiro visava as preocupações da autarquia pela ausência de monitorização da água, do solo e do ar, conforme estabelece o Plano de Ordenamento do PNSACV. Valentina Calixto directora de departamento do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) reconheceu ter havido “um conjunto de obrigações que não foram cumpridas por parte de várias entidades, incluindo o ICNF”. E acrescentou um outro dado: Não entendia o porquê “de ainda não se ter efectuado a cartografia necessária dos habitats e das espécies a salvaguardar quando esta deveria ter sido concluída há vinte e cinco anos”. Relembrou ainda que os actuais produtores de culturas intensivas “estavam a fazer o que já tinha sido efectuado há muitos anos por Thierry Roussel”, frisando que o ICNF constatou que a partir do ano de 2015 a “pressão da ocupação do território (no PNSACV) foi muito significativa”.
O autarca de Odemira, em função do cenário descrito e do seu contacto diário como o modelo cultural que estava a ser questionado, disse ter “dúvidas” que aquele tipo de agricultura “fosse sustentável” no futuro, sublinhando que “a procura dos produtos variava muito”. Daí que não concorde que no concelho de Odemira “venham a existir doze mil hectares de estufas” apesar de reconhecer que as condições do território são “as melhores do mundo” para a produção de berries (frutos vermelhos). Contudo, esta mais-valia não deveria implicar que fosse necessário “evacuar a população para se fazer apenas produção.”
Um estudo sobre os “Efeitos económicos da hortofruticultura no Perímetro de Rega do Mira”, elaborado por João Confraria investigador do Centro de Estudos Aplicados da Universidade Católica, apresentado em 2017, refere que a produção em Odemira, com destaque para os pequenos frutos, ascendeu, em 2015, aos quase 100 milhões de euros. E que o efeito total, directo e indirecto, no Valor Acrescentado Bruto (VAB) nacional foi de 71 milhões de euros.
Com o esperado aumento das exportações, prevê-se que a produção hortofrutícola no PRM atinja, dentro de cinco anos, os cerca de 200 milhões de euros. No entanto, João Confraria reconhece que em Odemira “pode estar-se perante uma situação de incompatibilidade de objectivos” entre a política agrícola e a política ambiental, admitindo que o problema “não tem solução fácil.”