100 anos de um cavalheiro de voz mágica chamado Nat King Cole
Foi neste dia há um século que nasceu o pianista e cantor que ajudou a moldar a música do século XX. Ícone de elegância, partiu demasiado cedo, aos 45 anos, mas, ouvindo-o com atenção, descobrimo-lo definitivamente presente.
Diz a lenda que o “King” para sempre associado ao seu nome lhe foi dado por um homem tão entusiasmado com a sua actuação num clube que não resistiu a saltar para próximo do pianista e exclamar: “O rei!”. Diz a lenda que o Nat King Cole Trio não nasceu enquanto tal, mas sim enquanto quarteto. No entanto, quando o baterista falhou o compromisso, o trio que restava decidiu continuar assim mesmo, abrindo caminho para a sua primeira fase de reconhecimento, ainda solidamente ancorada no jazz. E diz outra lenda que era precisamente pianista jazz, nada mais e tanto que isso seria, que Nat King Cole desejava ser. Até que, num bar, um ouvinte meio ébrio lhe pede que cante uma canção e ele responde que não canta, só toca. Nisto, intromete-se o proprietário do bar e sussurra “o homem gasta à grande”, pedindo-lhe que condescendesse ao pedido. E Nat King Cole cantou então Sweet Lorraine. Senhoras e senhores, se cantou! Desde esse momento, aliás, não mais parou de o fazer.
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Diz a lenda que o “King” para sempre associado ao seu nome lhe foi dado por um homem tão entusiasmado com a sua actuação num clube que não resistiu a saltar para próximo do pianista e exclamar: “O rei!”. Diz a lenda que o Nat King Cole Trio não nasceu enquanto tal, mas sim enquanto quarteto. No entanto, quando o baterista falhou o compromisso, o trio que restava decidiu continuar assim mesmo, abrindo caminho para a sua primeira fase de reconhecimento, ainda solidamente ancorada no jazz. E diz outra lenda que era precisamente pianista jazz, nada mais e tanto que isso seria, que Nat King Cole desejava ser. Até que, num bar, um ouvinte meio ébrio lhe pede que cante uma canção e ele responde que não canta, só toca. Nisto, intromete-se o proprietário do bar e sussurra “o homem gasta à grande”, pedindo-lhe que condescendesse ao pedido. E Nat King Cole cantou então Sweet Lorraine. Senhoras e senhores, se cantou! Desde esse momento, aliás, não mais parou de o fazer.
Ainda hoje, 54 anos após a sua morte, Nat King Cole continua a cantar naquele seu barítono todo charme e elegância, naquela sua voz próxima e reconfortante que se tornou parte da banda sonora do século XX. Neste 17 de Março, cem anos completos passados sobre o seu nascimento, já temos a sua voz recuperada em duas colectâneas editadas sexta-feira, Ultimate Nat King Cole, onde encontramos clássicos como Mona Lisa, Stardust, Nature boy, L-O-V-E ou Straighten up and fly right, e International Nat King Cole, CD de edição limitada que reúne 14 canções interpretadas noutras línguas que não o seu inglês materno, comprovando-se o seu alcance global em modo poliglota: canta em espanhol, italiano, francês, alemão e japonês. Além das colectâneas, chega também a reedição, em versão alargada com temas extra, de A Tribute to the Great Nat King Cole, álbum que, pouco depois da sua morte em 1965, lhe dedicou Marvin Gaye, um dos músicos distintos, como Ray Charles ou Sam Cooke, que o tiveram como modelo e influência determinante.
Nascido Nathaniel Adams Coles (o “s” do apelido cairia no início da carreira artística) em Montgomery, no Alabama, mudar-se-ia aos quatro anos para Chicago, seguindo a rota de tantas famílias afro-americanas no período, que largaram o sul do país, com o seu racismo endémico e as difíceis condições económicas, em busca de uma vida melhor a norte, amparada no muito emprego criado pelo forte tecido industrial. Migrou levado pelo pai, pastor baptista, e pela mãe, organista na igreja e sua primeira e determinante professora de piano, e foi acompanhado pela meia-irmã e pelos três irmãos, que também se tornariam músicos profissionais – foi integrado no sexteto do irmão mais velho, Eddie, um contrabaixista, que se estreou discograficamente em 1936; o irmão mais novo, Freddy, é cantor, continua no activo aos 87 anos e é uma das estrelas da homenagem a Nat King Cole organizada neste fim-de-semana na sua cidade natal.
Adolescente em Chicago, conjugava a aprendizagem de Rachmaninoff ou Bach na escola de música que frequentava com os sons modernos e vibrantes de Louis Armstrong que ouvia à porta dos fervilhantes clubes da cidade. Não tardou a fazer a sua escolha. Aos 15 anos, abandonou a escola e seguiu o irmão Eddie, nove anos mais velho. Gravou com os seus Eddie Cole’s Swingsters, integrou a produção de um musical, Shuffle Along, na qual encontrou a sua primeira mulher, Nadine Robinson. Em Los Angeles, onde se instalou, trabalhou primeiro com big bands, antes de, consequência do contrato assinado com um pequeno clube, sem espaço para albergar um ensemble daquela dimensão, fundar o Nat King Cole Trio com o contrabaixista Wesley Prince e o guitarrista Oscar Moore. Nesse período, os seus talentos de pianista começaram a ser elogiados no seio da comunidade jazzística e Cole seguido com atenção. Entretanto, certa noite, um homem ébrio pede-lhe que cante e ele condescende. Sweet Lorraine, o standard que terá cantado nessa noite, é também, no início dos anos 1940, um dos seus primeiros grandes êxitos.
Sem nunca abandonar o piano, Nat King Cole vai-se transformando aos olhos do público de pianista em vocalista. No processo, êxito atrás de êxito, clássico atrás de clássico, torna-se, em impacto popular, o maior nome do espectáculo americano, sucedendo a Bing Crosby e ultrapassando um dos seus grandes admiradores, Frank Sinatra. Com o público rendido à interpretação imaculada, ao calor e riqueza da sua voz, bem como à sua pose serena e cavalheiresca, Nat King Cole transforma com o seu êxito a Capitol numa das maiores editoras mundiais. Pelo caminho, vai fazendo história e deixando património inestimável para o futuro. Dois exemplos. Em 1946, foi o primeiro a gravar (Get your kicks on) Route 66, de Bobby Troup, que se transformaria mais tarde, noutras versões, em clássico do rock’n’roll. Dois anos depois, chegaria a inigualável, portentosa, Nature boy. Oferecida pelo misterioso músico e compositor Eden Ahbez, inspirada em música Yiddish, é servida por uma orquestração imponente que o sentido dramático da interpretação, quer na voz, quer ao piano, transformam em algo maior. Olhando para o futuro, diríamos que tudo aquilo que a tantos toca hoje num Benjamin Clementine, por exemplo, estava já contido naqueles 2m56s de música.
Numa América a viver ainda a ignomínia da segregação, Nat King Cole parecia transcender a barreira racial – em 1956, foi a primeira celebridade negra a ter o seu próprio programa de televisão, com o The Nat King Cole Show emitido para todo o país pela NBC. Mundo fora, da Europa à Ásia, da Ásia à América Latina, era também uma celebridade de primeira grandeza – para o que contribuiu, por exemplo, a série de álbuns cantados em espanhol que registou, dos quais o primeiro foi, em 1958, Cole Español, gravado em Cuba e onde encontramos a célebre Quizás, quizás, quizás (Perhaps, perhaps, perhaps).
Numa América a viver ainda a ignomínia da segregação, escrevíamos, Nat King Cole parecia transcender a barreira racial. Parecia. Lights Out, musical assinado por Colman Domingo e Patricia McGregor actualmente em cena na Geffen Playhouse, em Los Angeles, recria a última emissão do The Nat King Cole Show, em 17 de Dezembro de 1957. Ou melhor, revela de forma pungente aquilo que os espectadores não viam. As tormentosas sessões de maquilhagem a que era submetido para que a pele negra surgisse nos ecrãs o mais branca possível. A distância, milimetricamente medida pelos produtores, a que, nos duetos com cantoras brancas, a estrela do programa estava obrigada. A piada racista que, no meio de um número, um dos convidados poderia dirigir de forma casual ao seu anfitrião, perante os risos do público. O facto de, apesar dos óptimos ratings de audiência, ser praticamente impossível garantir patrocinadores para o programa – as marcas tinham receio de perder clientes pela associação ao programa de televisão de um artista negro, mesmo que esse artista fosse o mais célebre no país. Não é por acaso que a peça surge neste momento histórico: recorrendo a um passado doloroso, comenta um presente ainda por sarar, como tem sido evidente nos últimos anos.
O sereno Nat King Cole, o homem da voz doce e pacificadora, o cavalheiro de elegância ímpar, sabia perfeitamente o que era o seu país e o que era, nele, a sua condição. Em 1948, ao adquirir uma mansão com a sua segunda mulher, Maria Hawkins (antiga cantora da orquestra de Duke Ellington, amiga pessoal de Eleanor Roosevelt), no luxuoso bairro de Hancock Park, em Los Angeles, até então exclusivo a brancos, enfrentou não só a oposição dos moradores, como teve que lidar com tiros à sua porta na madrugada ou com membros do Ku Klux Klan a incendiar cruzes no seu jardim. Quando a família Cole, depois de recusar uma oferta monetária para abandonar a sua residência, se reuniu com os moradores que a queriam expulsar, estes explicaram-lhe que não pretendiam ver ninguém “indesejável” a mudar-se para o bairro. Nat King Cole, mantendo a compostura, retorquiu: “Também não o desejo, e se vir alguém indesejável a mudar-se para aqui, serei o primeiro a queixar-me.” Em 1956, naquele que era o concerto de regresso ao estado em que nascera, o Alabama, o confronto seria de uma natureza diferente – mais violento e ainda mais cobarde.
Em Abril de 1956, Nat King Cole actuava em Birmingham, no Alabama. Era o cabeça-de-cartaz de um concerto que, além de outras atracções, incluía actuações do músico com o seu trio e com a orquestra inglesa de Ted Heath. Com a segregação ainda em vigência, Nat King Cole actuaria primeiro para um público exclusivamente branco e, mais tarde, para um exclusivamente negro. Aconteceu durante a tarde. Depois da actuação com o trio, o orquestra de Ted Heath faz o seu número inicial. Quando Nat King Cole se junta à banda, é inicialmente exigido que a cortina desça, de forma a que o público não visse em palco uma banda de brancos misturada com músicos negros. O absurdo da situação é eliminado com a subida do pano e a violência chega à terceira canção cantada por Nat King Cole: gritando slogans racistas, quatro membros do Ku Klux Klan saltam da plateia e derrubam-no e agridem-no. São rapidamente parados pela polícia, mas deixam Cole ferido. Nessa noite, ao actuar para o público negro, não cantará – não o permitem os ferimentos. Foi o momento de viragem.
Até àquele momento, dizia-se um “entertainer, não um político”. Considerava que lhe competia trabalhar na sua música e, se possível, trazer a mudança através dela. Depois de Birmingham, e da discussão subsequente com os activistas negros, que o acusavam de não aproveitar a sua posição privilegiada para lutar contra o flagelo do racismo institucionalizado, Nat King Cole mudou, passando a apoiar financeiramente a luta pelos direitos civis, recusando-se a actuar para públicos segregados, participando nas marchas lideradas por Martin Luther King. Na sua música, porém, manteve-se exactamente o mesmo até ao fim, quando o cancro do pulmão o levou em Fevereiro de 1965.
Escrevemos a início que Nat King Cole continua a cantar. É isto tão verdade quanto os episódios lendários da sua biografia que relatámos, dos quais só a sua inadvertida conversão em cantor tem correspondência com a realidade. No mês passado, Gregory Porter, o cantor de 47 anos que tem sido voz da canção popular do jazz clássico e seus standards, editou um dueto que gravou com Nat King Cole. Ouvimos então King e Porter a trocarem entre si versos do clássico The girl from Ipanema, a canção ícone da bossa-nova que os Estados Unidos, de Frank Sinatra ao próprio Nat King Cole, abraçaram nos anos 1960. Dueto virtual, claro. Ou seja, Gregory Porter a responder à voz gravada de Cole. Soa familiar?
Em 1991, Natalie Cole, filha mais velha entre os cinco que Nat King Cole teve com Maria, fez o mesmo numa nova versão de Unforgettable, que transformou a canção de 1951, sucesso moderado à época para os padrões do seu intérprete, na sua canção assinatura. Consequência da sua morte precoce aos 45 anos, talvez Nat King Cole não tenha atravessado os tempos com o protagonismo que o seu percurso, a sua influência e o seu talento mereceriam. Ainda assim, a verdade é que se mantém um ícone: é uma figura imediatamente reconhecível, símbolo de sofisticação e coolness, voz a que não precisamos de reunir som (é como se já estivesse incluída no ícone imortalizado). Isso, até que o ouvimos verdadeiramente, como Gregory Porter o ouviu na infância, episódio que recordou em 2017 à Downbeat: “Lembro-me de, ao passar pelos discos dela [os da sua mãe], pensar quão estranho era aquele nome, e lembro-me de ver pela primeira vez a sua imagem: aquele homem elegante, bonito e forte sentado à lareira, com o aspecto de papá de alguém. Depois pus o vinil no gira-discos e das colunas chegou aquela voz, aquele som protector.” Até que o ouvimos verdadeiramente, dizíamos, e descobrimos o resto, a sua dimensão concreta e influência.
Escreveu certo dia a Time: “Não foi corrompido pelo mainstream. Usou o jazz para o enriquecer e o renovar, e deixou atrás de si um legado duradouro. Muito de acordo com um rei.” Dizia em 2010 o historiador musical Will Friedwald à NPR, a rádio pública americana: “O mais impressionante na voz de Nat [King Cole] é ser como que incandescente. Como uma espécie de feitiço a ser lançado.” Cem anos depois do seu nascimento, continuamos sob a influência dessa magia.