Galiza: uma mochila, o oceano e pouco mais
Na Galiza, o Caminho dos Faróis é uma viagem entre a potência do mar e a descoberta de pequenas aldeias costeiras.
Nem todos os caminhos que chegam a Finisterra, na Galiza, passam por Santiago de Compostela. O Caminho dos Faróis da Costa da Morte consiste em 200 quilómetros de puro oceano e pequenas aldeias, pelas quais se fica apaixonado a cada passo. “A despeito do nome, esta costa não são só tragédias”, conta Victor, caminhante solitário, apaixonado por poesia. “É um mar difícil, é verdade, mas os moradores e os pescadores locais têm sempre vivido em comunhão com ele. Dele receberam sempre sustento, mesmo que às vezes haja um preço a pagar, e o oceano não poupa ninguém.”
Este é um percurso que requer um mínimo de treino ao atravessar súbitos desníveis durante etapas que, por vezes, se tornam bastante longas. No entanto, não há esforço que não seja posteriormente recompensado. A cada viragem, após cada subida ou descida, o que vai ficando é a admiração pela majestosa natureza, por um pequeno porto de pescadores ou uma praia solitária embutida em altos penhascos. O profundo respeito pelo mar é algo que se sente desde logo, ao falar com qualquer pessoa que viva nestas terras.
O Caminho dos Faróis põe-nos em contacto com tudo isto, mas, antes de mais, connosco mesmos. As longas caminhadas no silêncio de um bosque perfumado, enquanto abrimos o caminho entre samambaias e arbustos, ou as travessias de praias que parecem nunca acabar, apenas tocadas pela tímida luz da madrugada, quando o oceano ainda parece meio adormecido, “são momentos que trazem uma tranquilidade profunda, que permanece durante dias”, continua Victor.
“Nada nos é exigido, a não ser ficar a ouvir o som do oceano e entregarmo-nos de alma e coração à viagem. O caminho vai ocupar-se do resto. E isto vale para cada caminho, costeiro ou não.” Com esta atitude, mesmo pequenos encontros casuais serão capazes de dar um sentido mais profundo a um dia já memorável só por si. Ouvindo as pessoas da região, é possível conhecer não apenas a cultura local, mas também a história de um lugar. Como sempre, são as pessoas que fazem a diferença.
A origem de um nome
Este trecho costeiro da Galiza recebeu a sua sinistra alcunha após uma longa série de naufrágios sucedidos no decorrer dos séculos. A forma irregular do litoral, juntamente com condições meteorológicas frequentemente adversas, foram uma combinação fatal para um grande número de embarcações. O naufrágio mais célebre remonta a 1890. “O Serpent era um navio inglês”, conta Paco, um idoso pescador, enquanto do sítio onde está sentado observa ao longe, além das árvores, o Rio do Porto, nos arredores de Punta Sandría.
“Tinha de ir de Plymouth a Freetown, na Serra Leoa, mas naufragou durante uma violenta tormenta... era 10 de Novembro”, diz, após um breve silêncio. No sítio do naufrágio encontra-se hoje um memorial, uma espécie de pequeno forte de pedra como lembrança daquele dia. “A lápide diz que ali jaz o capitão”, continua Paco, “mas na realidade não há certeza disto”. “O capitão foi provavelmente sepultado juntamente com o resto da tripulação, lá, onde os recuperaram. Isto porque, enquanto ingleses, eram de fé protestante e o pároco naquela altura não os quis enterrar em solo consagrado.”
Cabo de Trece, aparentemente, não é muito diferente de muitas outras pontas rochosas que se encontram no Caminho dos Faróis. Chega-se lá após se ter ultrapassado, não sem esforço, um promontório arenoso em cima do qual se enxerga a costa por quilómetros e depois de se ter andado numa compridíssima praia de areia fina. O Cemitério dos Ingleses não é um conjunto de lápides, ao contrário daquilo que o nome poderia sugerir. Mas a poucos metros da água surge uma série de amontoados de seixos sobrepostos por diferentes alturas, parecidos com delgadas e instáveis colunas.
Conhecidas na Galiza como amilladoiros, são um costume de origem muito antiga. A saber: os celtas acreditavam que a alma do falecido que não tivesse sido capaz de cumprir as próprias promessas em vida permaneceria nas pedras. Se utilizados com a função de memorial, pensava-se que estes amontoados de pedras podiam ajudar as almas neles contidas a encontrarem finalmente descanso. É certamente um lugar com um aspecto místico. Construídos espontaneamente pela população local ou por quem lá passa ao longo dos anos, estas “colunas” parecem materializar as almas dos marinheiros aqui naufragados, eternamente amarrados a esta ponta rochosa. Trata-se de um lugar que não nos deixa indiferentes.
Não muito longe do lugar do naufrágio do Serpent, eleva-se hoje o farol de Cabo Vilán. Substituindo uma primeira estrutura mais pequena e alimentada a vapor, foi o primeiro farol eléctrico de Espanha. Chega-se lá depois de alguns quilómetros num cómodo trilho de terra batida, salvo uma curta mas íngreme subida entre silvas e giestas, e o último trecho asfaltado. A vista desde as rochas do farol deixa-nos mais uma vez contemplativos. Chegar ali ao entardecer significa gozar um espectáculo capaz de reconciliar o corpo e a alma.
Ali, onde chegam os peregrinos
O final desta viagem será o solitário farol de cabo Finisterra (ou Fisterra). No entanto, antes de lá chegarmos, ainda faltam oito dias de caminho. Nove, se se escolher dividir em dois a etapa de 32km que liga Camariñas a Muxia. Se o caminho fosse um colar, esta etapa seria uma das pérolas mais brilhantes. Há pouco tempo deixámos para trás Cabo Vilán e ela aparece lá, no horizonte, além da Ría de Camariñas. “Consoante nos aproximemos, percorreremos a etapa com mais asfalto do caminho, afastando-nos do oceano por algum tempo, que ficará sempre no horizonte”, conta Fernando ao seu amigo, quando já se encontram na última parte da etapa que faz a ligação entre as vilas de Laxe e de Arou. Juntamente com eles, com surpresa, reencontramos Victor, que pensávamos tivesse ficado mais atrás.
Encontrámos Fernando em Camelle, nos arredores imediatos de Arou, da qual é separada apenas por um baixo promontório. É um caminhante muito bem organizado. Conheceu anteriormente uns dos voluntários que traçaram o percurso e, devidamente equipado, tem sido o anfitrião do seu amigo ao longo desta etapa. “Depois de termos passado por Camariñas, juntamente com o seu amplo porto de pescadores, caminharemos ao longo da ria com o mesmo nome, através de um lindíssimo e longo trecho de bosque”, continua ele, enquanto opera o seu GPS. Nas tranquilas águas desta enseada, observam-se mariscadores a trabalhar no fundo lodoso, revelado pela baixa maré. Ao seu redor há um grupo de pequenas garças brancas e outras aves de rio.
Este é um trecho da Galiza autêntica, quase arcaica, com pequenas povoações que ainda guardam muitas das velhas construções em pedra que, em estreitas vielas, se misturam com outras mais recentes, enquanto um cão nos acompanha por uns metros ou um gato nos observa com ar desinteressado. Perto de áreas habitadas ou de campos cultivados, são omnipresentes os típicos hórreos. Construções em pedra ou em madeira – estas últimas mais raras, devido à difícil conservação no tempo –, são os típicos celeiros do Noroeste da Península Ibérica. A sua forma lembra a de uma cabana, levantada por meio de grossos pilares para proteger a colheita da humidade ou dos roedores. É possível vê-los de diferentes tamanhos. Antigamente, quanto maior fosse um hórreo, maior era a colheita que podia conter e mais rico era o dono do terreno.
Um pouco mais à frente, o Caminho dos Faróis começará a cruzar-se com o caminho que depois de Santiago passa por Muxia, chegando a Finisterra. Pouco antes da entrada em Muxia, atravessa-se um lindíssimo pinhal que parece quase querer ocultar a aldeia no último momento para depois, de repente, a descobrir. Recebe-se muito, tanto do mar, como da terra, como a lenha para cozinhar. “Com isto a minha mulher consegue cozinhar para os próximos dias”, diz Jesús, aparecendo sem pressa das samambaias com um tronco acabado de cortar apoiado no ombro esquerdo e uma bengala na mão direita. Tem 83 anos, mas não parece. “Em 1936 nasci eu, na altura da Guerra Civil na Espanha. E assim já... já correu muita água debaixo das pontes [ya llovió]”, afirma, pensativo, fazendo alusão ao tempo que já passou. Em Muxia, desde 1947 sem nunca ter deixado a Galiza, tem atrás de si quarenta anos como pescador.
Entra-se no povoado pelo mesmo percurso indicado pelas conchas do Caminho de Santiago, passando por duas tranquilas praias e um trecho de passadiços de madeira. É como se fôssemos magneticamente atraídos para a ponta desta pequena península. Lá, entre as rochas polidas pelo vento e pelas ondas, surge a capela de Nosa Señora da Barca. A entrada está virada para o oceano, evidenciando desde logo a sua estreita relação votiva: a tradição crê que, neste local, São Tiago viu Nossa Senhora por cima de um barco de pedra, enquanto rezava. A estrutura surge a pouca distância das chamadas Pedras Santas, um lugar que outrora fora de cultos pagãos. Não muito longe da capela ergue-se La Herida, imponente escultura em memória do naufrágio do petroleiro Prestige, em 2002, que se mostra como uma enorme brecha entre dois blocos de pedra. Quem tiver tempo, um dia aqui é um dia bem gasto.
Contudo, há mais dois dias para se chegar a Finisterra. Ainda tem de se passar pelo farol de Cabo Touriñán, o farol mais ocidental da Espanha peninsular. Mas, como num bom filme, o melhor chega no fim. No último dia, a poucos quilómetros de Nemiña – conclusão da penúltima etapa –, e após termos andado outra vez por altos promontórios com pequenos regatos a atravessarem o trilho, os nossos passos e o nosso olhar serão livres de deslizar ao longo da pura vastidão da praia do Rostro.
Dois quilómetros de uma extensão de alva areia que, a perder de vista, separa o azul do oceano do verde das colinas. Bandos de gaivotas levantam voo à nossa passagem, para depois se empoleirarem um pouco mais longe. Após alguns quilómetros de costa montanhosa, depois da milésima viragem, eis a aparição. É o Cabo de Finisterra, juntamente com o seu farol. Lá em baixo, o Caminho dos Faróis converge pela última vez com o Caminho de Santiago, e a nossa história com as mais de mil dos peregrinos, chegados dos quatro cantos do globo. Há quem queime roupa usada durante o caminho, quem procure um canto de recolhimento – nem sempre fácil por causa dos muitos turistas –, quem deixe o próprio bastão nas rochas ou quem simplesmente volte para a aldeia de Finisterra, cada um com a sua mochila e os seus pensamentos.
Tradução de Matteo Licchelli