Neto de Moura: uma vítima da transparência
A publicação das decisões dos nossos tribunais obedece a critérios publicamente desconhecidos e impossíveis de adivinhar.
Foi o facto de a jornalista Ana Henriques, do PÚBLICO, ter pesquisado, pelo nome de Neto de Moura, as decisões judiciais do Tribunal da Relação do Porto na base de dados www.dgsi.pt e ter encontrado o acórdão de 31 de Outubro do ano passado que divulgou nas páginas deste jornal que deu origem ao tsunami mediático-cultural que nos permitiu escrutinar um pouco o funcionamento do nosso poder judicial.
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Foi o facto de a jornalista Ana Henriques, do PÚBLICO, ter pesquisado, pelo nome de Neto de Moura, as decisões judiciais do Tribunal da Relação do Porto na base de dados www.dgsi.pt e ter encontrado o acórdão de 31 de Outubro do ano passado que divulgou nas páginas deste jornal que deu origem ao tsunami mediático-cultural que nos permitiu escrutinar um pouco o funcionamento do nosso poder judicial.
Houve, naturalmente, muita gente que se perguntou se as decisões do desembargador Neto de Moura não seriam mais do que a ponta de um imenso icebergue de uma Justiça formalista, satisfeita em cumprir à letra – ou de forma enviesada... – os preceitos processuais, mas alheia a preocupações e valores de ordem constitucional e civilizacional. E, embora não me pareça que a estrutural desvalorização que Neto de Moura tem do crime de violência doméstica seja habitual nos nossos tribunais, a verdade é que não podemos saber se o é ou não, porque a publicação das decisões dos nossos tribunais obedece a critérios publicamente desconhecidos e impossíveis de adivinhar.
Ninguém sabe que percentagem de acórdãos dos tribunais superiores são publicados, mas seguramente serão muito menos de metade da totalidade dos acórdãos proferidos e os critérios da sua publicação – que é decidida pelos juízes dentro dos próprios tribunais – só não são pouco transparentes porque são absolutamente opacos.
Por vezes tem-se conhecimento, pela imprensa, de um determinado acórdão que tem repercussão social. Vai-se procurá-lo às bases de dados existentes e não está lá. Alguém o entregou a algum jornalista por razões certamente meritórias. Outras vezes, como advogados, temos conhecimento directo – por intervenção nos processos – de acórdãos relevantes em termos jurídicos e sociais, mas certo é que não aparecem nas bases de dados. E o caso de juízes desembargadores que não têm um único acórdão, em que tenham sido relatores, publicado ao longo de anos e anos? Será que isso acontece porque não querem que sejam divulgados os seus acórdãos? E têm poder para decidirem isso? Ou será que só trabalham em casos irrelevantes? Ou serão censurados? Ou, pura e simplesmente, não trabalham? Não sabemos.
Os magistrados, em geral, manifestam a sua maior incredulidade quanto à possibilidade de existência de quaisquer critérios manipulatórios na não publicação dos acórdãos, mas a verdade é que ninguém consegue explicar de forma minimamente satisfatória quais são os critérios de publicação ou da não publicação. Critérios que não só não estão escritos em lado nenhum, como, seguramente, não serão uniformes entre os diversos tribunais superiores e mesmo em cada tribunal serão sujeitos a variações em função das pessoas que os definem e aplicam.
A situação existente é um absurdo, dada a importância que tem, em termos de cidadania activa e de vivência democrática, podermos conhecer, pelo menos, uma parte substancial das decisões dos nossos tribunais, sejam sobre a violência doméstica, o tráfico de droga, a regulação de responsabilidades parentais ou o arrendamento. É certo que as decisões, antes de serem publicadas, têm de ser expurgadas dos dados pessoais dos diversos intervenientes no processo, garantindo, assim, o seu anonimato e, naturalmente, tal trabalho exige tempo e pessoas, mas parece que, nesta área, o Ministério da Justiça podia e devia ter uma parte activa. Não me parece que a intervenção do ministério na divulgação das decisões judiciais venha pôr em causa a independência do poder judicial.
Nas palavras do Conselho Europeu (2018/C 362/02) de 8 de Outubro do ano passado, “...a existência de critérios de seleção escritos pode facilitar os procedimentos de trabalho das instituições responsáveis pela publicação das decisões judiciais, contribuindo, ao mesmo tempo, para uma imagem de transparência junto do público”. Será que, ainda neste século, teremos direito a ver definidos esses critérios de publicação? E a vê-los respeitados? Seguramente que quem não quer ver o seu trabalho escrutinado resistirá afincadamente. Neto de Moura, ao menos, terá tido o mérito de não ter escondido o seu trabalho...