A Europa está sitiada. E terá de se defender sozinha
Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa apontam receitas para assegurar a sobrevivência da União Europeia. O aprofundamento da união monetária e bancária são os principais ingredientes para impedir o projecto europeu de submergir face às ameaças, internas e externas, que enfrenta.
Numa União Europeia (UE) ameaçada de morte por todos os lados, Marcelo Rebelo de Sousa não tem dúvidas: ou os líderes europeus se mostram capazes de entender como estruturais, e não como conjunturais, os problemas que a ameaçam, “ou uma oportunidade soberana ficará perdida”.
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Numa União Europeia (UE) ameaçada de morte por todos os lados, Marcelo Rebelo de Sousa não tem dúvidas: ou os líderes europeus se mostram capazes de entender como estruturais, e não como conjunturais, os problemas que a ameaçam, “ou uma oportunidade soberana ficará perdida”.
“Se os problemas que a União Europeia enfrenta são estruturais, e, sendo iminentemente europeus, mergulham as suas raízes nas realidades nacionais, então importa pensar e decidir estruturalmente, e não criar ilusões de que brotarão de um qualquer milagre europeu líderes e bases de sustentação que não venham de uma profunda mudança de vida dos Estados-membros da União. Sempre com a exacta noção de que, de fora da União Europeia, não virão grandes ajudas para já”, avisou Marcelo Rebelo de Sousa, falando na Conferência A Europa e o Presente – o futuro da Europa pensa-se agora, promovida ontem pelo PÚBLICO, na Casa da Música, no Porto.
Lembrando que a UE joga sozinha numa luta pela sua própria sobrevivência, numa conjuntura mundial que a ameaça, tanto externa como internamente, Marcelo alertou que a ajuda que poderá aspirar a receber será em “em áreas muito limitadas, como a da defesa e da segurança” (e aproveitou aqui para lembrar que “é bom que a Europa tenha a noção de que quem não pode pagar o que sonha não pode sonhar tão alto solitariamente”).
Logo, concluiu o Presidente da República, a Europa terá de saber posicionar-se num xadrez em que Estados Unidos da América, China e Índia disputam entre si a centralidade económica do universo. Esta correlação de interesses que ameaça a UE fica ainda mais desequilibrada se olharmos, como Marcelo Rebelo de Sousa, ao esforço da Rússia para o alargamento do seu espaço estratégico nacional, sobretudo nas relações com o Leste Europeu, o Próximo e o Médio Oriente e o Norte de África, por um lado, e ao modo como esta “atenção russa” se reflecte “na vida europeia, em termos de acompanhamento cibernáutico, bem como da vivência dos sistemas políticos europeus”, por outro.
A união monetária e bancária é o caminho
Perspectivando para a UE um caminho pejado de obstáculos (e aqui cabem a “imprevisibilidade económica e financeira mundial”, tanto como o “unilateralismo proteccionista em moda”, a “depreciação de organizações de direito internacional”, a possível desaceleração do crescimento e as pressões migratórias externas), o Presidente dedicou-se, em meia hora, a fundamentar por que considera que os grandes problemas - como o crescimento económico insuficiente, o emprego ou diluição do papel externo da UE e distanciamento dos cidadãos - são hoje “mais estruturais do que conjunturais”.
Para eliminar os obstáculos que se lhe colocam, a UE tem de os enfrentar, “sem rodeios, com eficácia e com participação cidadã”. Como? Aprofundando a união monetária, adoptando princípios e regras para a união bancária, fazendo a reflexão “inadiável” sobre a aposta na Ciência e Tecnologia, “nas suas repercussões, a prazo democraticamente curto na vida das pessoas, na organização do trabalho, na actividade produtiva, nas prestações sociais...”.
Igualmente urgente, segundo o chefe de Estado, é a “resposta a uma visível sensação de vazio em matéria de segurança”, o que remete para uma óbvia articulação com a Aliança Atlântica, mas que requer “cooperações mais vastas”, tal como nas migrações e refugiados, “inseparáveis de acções estruturais nos países de origem” e apelando ao multilateralismo e ao papel das organizações internacionais”. Nada disto se conseguirá, porém, se não aumentar a sensibilidade quanto à necessária “transparência das instituições europeias, inseparável da sua funcionalidade” e fundamental para garantir a confiança dos cidadãos europeus.
“Não há instituições europeias fortes com líderes fracos e não há líderes europeus fortes com líderes nacionais fracos e não há instituições europeias fortes com instituições nacionais fracas”, ditou ainda o Presidente, para quem a crise que debilitou as lideranças nacionais, traduzida no reforço dos partidos “de segunda ou terceira geração de contestação ou de formulações mais radicais e periféricas”, contaminou o Parlamento Europeu com “novas clivagens axiológicas, doutrinárias, ideológicas, sobre migrações ou refugiados, convites a compassos de espera, egoísmos, laivos de proteccionismos, afastamento ainda mais acentuados dos cidadãos”.
Europa a duas velocidades
Com o inimigo instalado nas suas próprias instituições, a UE terá de apostar na pedagogia. “Queixarmo-nos de eurocepticismos, eurocriticismos, que nascem e são alimentados por omissões, lacunas, sobrancerias ou arrogâncias nossas, é um sintoma de total descolagem nossa da realidade”, avisou.
O primeiro-ministro, António Costa, corroborou o vaticínio de uma Europa sob ameaça, seja pela deriva proteccionista que tem vindo a ser desencadeada pelos EUA, seja, a nível interno, pela “deriva autoritária que existe em diversos Estados-membros”. E, porque, entre outras coisas, representa sete décadas de paz num território que teve séculos de guerras, constituindo, além disso, “o regime económico e social que mais desenvolveu o mecanismo de prosperidade partilhada”, a Europa “merece e pode ser defendida”, lembrou.
As causas destas ameaças que pendem sobre o projecto europeu foram enumeradas por Costa: “Têm a ver com o aumento das desigualdades, com o medo relativamente à capacidade de mantermos o nosso modelo social perante desafios como o das migrações, de defender a segurança perante a ameaça do terrorismo, de assegurar a paz perante a ameaça de conflitos que rodeiam as nossas fronteiras, de continuarmos a ser prósperos perante os desafios da globalização”.
Quanto às migrações, a vizinhança com um continente que, como África, caminha para representar 50% da população mundial nas próximas décadas, “exige uma grande parceria para o desenvolvimento do continente africano”, mas, acrescentou, requer mais: “Requer uma gestão comum de uma fronteira que é comum e requer que possamos gerir e partilhar de modo solidário a responsabilidade que a Europa tem, e que não pode declinar, de assegurar protecção a quem dela carece”. O contrário será “consentir que o Mediterrâneo, que foi berço de civilizações, seja um cemitério de povos que procuram na Europa possibilidade de construir novas oportunidades de vida”.
“Só em conjunto podemos fazer mais pelo desenvolvimento de África, proteger melhor a nossa fronteira comum e partilhar a responsabilidade que temos de gerir melhor os fluxos migratórios de que precisamos para assegurar uma dinâmica demográfica positiva no conjunto da União Europeia”, sublinhou ainda Costa.
Sem medo dos impostos europeus
Para fugir ao risco de a Europa mergulhar uma vez mais na imobilidade, o primeiro-ministro apontou a necessidade de pragmatismo. “Hoje é mais difícil obtermos consensos do que quando éramos 12. Isso não pode ser visto como um problema, mas implica que aceitemos que a Europa pode continuar a ser construída com geometrias variáveis, permitindo a participação de alguns em projectos mais avançados e de outros em projectos menos avançados, desde que assegurada a igualdade de direitos”, defendeu, recusando que tal represente a defesa de uma Europa a duas velocidades. “Isto não é particularmente novo: em Schengen não participamos todos, no euro não participamos todos. Mas podemos fazer mais na fiscalidade e na segurança e não vamos conseguir fazer isto a 27”, apontou.
Avesso, como Marcelo, ao proteccionismo como resposta às ameaças do mercado globalizado, Costa defendeu o reforço da capacidade orçamental da União Europeia. E sugeriu mesmo que tal poderá ser conseguido por via da criação de novos impostos que incidam, por exemplo, sobre o conjunto das empresas transnacionais da economia digital “que não pagam o imposto onde geram o proveito”.
Sem medo, por isso, da expressão “impostos europeus”, Costa considerou ser urgente concluir a união económica e monetária. “Enquanto não concluirmos esta união económica e monetária, dificilmente teremos uma base sólida para construir qualquer política de futuro. E o pior que podemos fazer é esta fuga para a frente: vamos agora discutir um novo exército europeu, uma nova polícia de fronteiras, enquanto não resolvemos uma coisa que é a base sobre a qual se pode construir”, considerou, apontando ainda como “vital” completar a união bancária, “havendo, de uma vez por todas, uma garantia europeia de depósitos e mecanismos de garantia dos fundos de resolução nacionais”.