Ataque na Nova Zelândia: Tarrant conseguiu provar que “nenhum lugar do mundo é seguro”
A Nova Zelândia, um dos países mais seguros do mundo, tem 1,2 milhões de armas nas mãos de privados. Entre os seus cinco milhões de habitantes, a maioria mostra-se pouco receptiva à imigração muçulmana. Os números mais recentes mostram os homicídios com armas passaram de três a 12 por ano no país.
Brenton Tarrant, australiano de 28 anos, não esconde as suas motivações, expressas no manifesto de 74 páginas que disponibilizou na Internet antes do ataque que fez esta sexta-feira contra duas mesquitas na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia.
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Brenton Tarrant, australiano de 28 anos, não esconde as suas motivações, expressas no manifesto de 74 páginas que disponibilizou na Internet antes do ataque que fez esta sexta-feira contra duas mesquitas na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia.
Descrevendo as suas acções como “terroristas” e “racistas”, Tarrant, que tinha como objectivo atingir ainda uma terceira mesquita, uma igreja convertida em Ausburton, explica que quis mostrar que “nenhum lugar do mundo é seguro” e escolheu realizar esta carnificina depois de visitar as mesquitas que tomou como alvo.
No texto, divulgado e entretanto apagado das suas contas nas redes sociais Twitter, Facebook e Instagram, onde também divulgou em directo um vídeo dos ataques, Tarrant descreve os seus dois anos de radicalização e preparativos, afirmando que os factores determinantes para a sua transformação foram as eleições presidenciais franceses de 2017, que a dirigente francesa de extrema-direita Marine Le Pen quase venceu, e a morte de Ebba Akerlund, de 11 anos, atropelada num ataque com um camião em Estocolmo, no mesmo ano.
Aliás, este “extremista de direita”, que se apresenta como “um branco de classe trabalhadora de baixos rendimentos”, nascido em Grafton, no estado australiano de Nova Gales do Sul, intitula o seu manifesto The Great Replacement (a grande substituição), e nele explica que apoia “muitos daqueles que se posicionaram contra o genocídio étnico e cultural” em curso, dizendo que quer “criar um clima de medo” e “incitar à violência” contra os muçulmanos.
“Escolhi armas de fogo pelo efeito que teriam no discurso da sociedade, pela cobertura mediática que proporcionam e pelo efeito que podem ter na política dos Estados Unidos e, portanto, na situação política do mundo”, escreveu, garantindo que actuou sozinho e que a Internet foi “a sua fonte de inspiração”. “Não se encontra a verdade em mais nenhum lugar”, garante no manifesto em que cita o poema do galês Dylan Thomas “Não entres tão depressa nessa noite escura” e explica no seu The Great Replacement ter sido levado a matar dezenas de muçulmanos “invasores” envolvidos no “genocídio dos brancos” por Candace Owens, comentadora e activista política americana de extrema-direita.
“Cada vez que ela fala deixa-me aturdido, os seus comentários e a suas visões ajudaram a levar-me cada vez mais para a crença da violência como antídoto para o sofrimento”, escreve o jovem australiano. “Apesar de ter de renegar algumas das suas crenças, as acções extremas a que ela apela são demasiado para mim, até para os meus gostos.”
Depois de dar crédito a Owens pela sua radicalização, Brenton Tarrant brinca com a importância do videojogo Spyro the Dragon 3, onde aprendeu o “etno-nacionalismo”. Neste contexto, escreve Robert Evans numa análise ao manifesto de Tarrant no site Bellingat, é bem possível que o autor seja um fã dos vídeos da americana, que “certamente defende uma retórica anti-imigração”.
Guerra civil na América
As referências à activista americana, continua Evans, “parecem calculadas para semear a divisão e talvez até a violência entre a esquerda e a direita; em múltiplos momentos, o manifesto do autor expressa esperança que este massacre provoque novas tentativas para tentar controlar o acesso às armas nos Estados Unidos, que Tarrant acredita irão levar à confiscação de armas e à guerra civil”. “Ele acredita que esta guerra civil será a melhor maneira para destruir o ‘melting pot’ que é a América, uma ideia que repete vezes suficientes para parecer que é algo em que realmente acredita”.
Tendo em conta o tom da passagem em que cita Owens, parece claro que Tarrant a usa para chamar a atenção nos media sociais – aliás, insiste Evans, todo o manifesto está repleto de referências a memes e piadas de Internet que só o extremismo online iria compreender. Por exemplo, repete várias vezes o Navy Seal Copypasta, um meme que teve origem em 2010 no 4chan, um site em inglês onde os utilizadores postam de forma anónima com várias quadros onde os posts mais recentes surgem acima dos outros com conteúdos e directrizes diferentes. Não é possível a um utilizador registar-se no 4chan.
Para além do vídeo do directo dos ataques, Tarrant publicou várias fotografias no 4chan, incluindo imagens onde se vêem armas semiautomáticas com nomes de personagens da história militar, incluindo europeus que combateram o Exército Otomano nos séculos XV e XVI.
A maioria dos comentários que Evans encontrou ao manifesto são negativos, escritos por pessoas que temem que este massacre marque o fim do site 8cham, onde o australiano diz aos espectadores do seu vídeo “Subscrevam o PewDiePie”, noutra referência a um meme obscuro.
Diálogo com o extremismo online
As piadas usadas tentam definitivamente manter um diálogo com extremistas online, sublinha Evans, notando que só estes perceberiam a escolha da música que vai a ouvir no carro em direcção à mesquita Al-Noor, onde foram mortas 41 das 49 pessoas atingidas no atentado de Christchurch.
A canção, Remove Kebab, é retirada de um vídeo de propaganda sérvia feito pelos militares numa homenagem ao criminoso de guerra Radovan Karadzic. Remove Kebab também está escrito numa das suas armas – o australiano explica que teve uma infância normal, com pouco interesse em estudar, e conta que recentemente trabalhou com a Bitconnect, uma operadora de criptomoedas, onde ganhou dinheiro que lhe permitiu viajar, antes de trabalhar num “part-time num kebab” e de ter sido personal trainer.
O homem que orquestrou o ataque, diz que com esta acção quis marcar uma posição do seu povo em relação à imigração e à queda das taxas de natalidade ocidentais – Tarrant explica que tem entre os seus antepassados escoceses, irlandeses e ingleses, e que não foi influenciado por familiares nem amigos, descrevendo-os como “típicos australianos, apáticos e, na maior parte, apolíticos, que apenas mostram verdadeiro interesse por questões relacionadas com os direitos animais, ambientais e fiscais”.
No seu manifesto, apagado da Internet mas lido pela SBS News, um canal neozelandês, o australiano diz ainda que chegou há dois anos à Nova Zelândia, onde tencionava “viver temporariamente enquanto planeava o ataque”, mas depois decidiu que seria ali que lançaria o seu massacre, que começou a arquitectar em 2017. Descrevendo-se como “reservado e introvertido”, não explica durante quanto tempo ou onde morou na Austrália. No documento, escrito em formato de perguntas e respostas, explica que decidiu vingar as “milhares de mortes causadas por invasores estrangeiros”.
“Caso clássico de terrorismo de direita”
O antigo analista de serviços secretos e defesa neozelandês Paul G. Buchanon, director do site Análises do Paralelo 36, diz à televisão SBS que este massacre é “um caso clássico de extrema-direita e de terrorismo de direita”. Buchanon diz que o discurso de Tarrant lembra a retórica do norueguês Anders Breivik, que matou 77 pessoas em 2011, quando atacou Oslo e a ilha de Utoya, nos arredores da capital norueguesa, um dos “muitos que tomaram uma posição contra o genocídio étnico e cultural” e produziu igualmente um manifesto, que Tarrant elogia no manifesto.
Aliás, o australiano sugere que manteve contactos com o assassino em série de Oslo, através de uma troca de mails, dizendo que este lhe deu a sua bênção para o ataque – segundo afirma o atacante, ligado como Breivik ao movimento supremacista branco, o seu objectivo era começar uma “guerra racial”. “ The Great Replacemen t” refere-se a uma teoria nascida em França e popular entre os meios de extrema-direita segundo a qual os “povos europeus” estão a ser “substituídos” por populações de imigrantes não-europeus.
“As imagens divulgadas pelo atirador são extremamente penosas”, diz a polícia neozelandesa, avisando os internautas que podem ser condenados até dez anos de prisão por partilharem um vídeo publicado no Facebook Live e realizado por Tarrant com uma câmara fixada no seu corpo. Ali se vê um homem branco de cabelos curtos a conduzir até à Masjid al-Noor, no centro da cidade de Christchurch, na costa Leste da Ilha Sul, na Nova Zelândia, onde vivem perto de 370 mil pessoas, incluindo uma significativa comunidade muçulmana.
20 feridos em estado grave
Houve 41 pessoas a morrer nesta mesquita, o primeiro alvo de Tarrant. A segunda mesquita atacada foi a de Linwood, nos subúrbios da cidade: ali foram atingidas sete pessoas, incluindo mulheres e crianças. A vítima número 49 morreu no hospital – segundo a primeira-ministra, Jacinta Arden, dos 50 feridos atingidos por balas e hospitalizados, 20 estão em estado grave.
Um palestiniano que estava na mesquita Al-Noor conta ter visto um homem ser abatido com um disparo na cabeça. “Cerca de 200 pessoas aguardam notícias dos seus entes queridos. A menos que seja essencial, pedimos às pessoas que não venham visitar os pacientes”, disse o hospital de Christchurch num comunicado, explicando estar a tratar quase meia centena de pessoas, incluindo crianças, devido a ferimentos de bala.
“Devido à natureza de alguns ferimentos, muitas pessoas irão precisar de cirurgias múltiplas. Estamos a tentar reduzir o número de pessoas nas imediações”, acrescenta ainda a unidade hospitalar. Segundo um estudo da Universidade de Wellington, em Vitória, a capital kiwi, só 1% dos 5 milhões de neozelandeses se identificam como muçulmanos, indica um censos de 2013, citado pelos académicos. Destes, um terço nasceu fora do país.
Christchurch, diz director do site “Análises do Paralelo 36”, citado pela Rádio Nova Zelândia, “tem uma comunidade de supremacistas brancos muito activa, uma comunidade que nos últimos 20 anos tem atacado refugiados e pessoas de cor em múltiplas ocasiões”, diz Paul G. Buchanon. “Mostra que não vivemos num ambiente benigno, estamos infectados com o vírus do extremismo. Isto veio do supremacismo branco, não da comunidade muçulmana que foi hoje tomada como alvo”, acrescenta o especialista.
Os valores neozelandeses
O discurso dos media mostra que os cinco milhões de neozelandeses, país com 1,2 milhões de armas nas mãos de privados, são pouco receptivos à imigração muçulmana.
“Estou de coração partido. Na verdade, estou sentado a chorar”, disse ao site Stuff Zayd Blisset, presidente da Associação Muçulmana de Marlborough, a norte de Swindon, uma cidade rural da Inglaterra. “Isto é a Nova Zelândia. Isto não pode acontecer aqui”, diz Blisset – na década que terminou em 2013, ano dos últimos dados disponíveis, os homicídios com armas passaram de três a 12 por ano no país hoje tomado como alvo. O objectivo de Tarrant está cumprido, evocando o assassínio de 13 pessoas em Aramoana, na pequena cidade costeira da mesma Ilha do Sul, nos anos 1990.
“Fomos escolhidos por não sermos nenhuma destas coisas, nem um santuário para os que odeiam e condenam o racismo, nem um enclave para o extremismo”, disse a primeira-ministra neozelandesa, Jacinta Arden. “Aparentemente representamos a diversidade, a gentileza, a compaixão, damos casa aos que partilham os nossos valores, refúgios aos que precisam”, disse Arden aos jornalistas. “E esses valores, asseguro-vos, não podem e não serão abalados por este atentado”, acrescentou.