BE: o partido que nunca foi novo envelheceu
O BE pode só agora ter ultrapassado a adolescência, mas os métodos são velhos e as ideias há muito ultrapassadas.
O Bloco de Esquerda, festejando os seus 20 anos, parece agora querer deixar a adolescência partidária e exercer o poder até agora reservado aos partidos em idade adulta. O problema é a ambiguidade com que o faz: Catarina Martins profere numa entrevista recente, com alguma altivez, que a expressão “extrema-esquerda até poderia ser ofensiva”; ao mesmo tempo, os bloquistas apagam rapidamente posts antigos do seu website (esquerda.net), para poderem agora dizer que nunca apoiaram o regime venezuelano. Em 2013, lia-se no website oficial bloquista que, “enquanto que na Europa a democracia está a falhar, na Venezuela a democracia participativa tornou-se um sinal de identidade”, a par com outros textos defendendo fervorosamente que “os principais meios de comunicação dos Estados Unidos, espanhóis e os da direita latino-americana trabalham arduamente para marcar a agenda informativa sobre a Venezuela com o objetivo de sedimentar a ideia de que estamos perante um ‘Estado falido’”. Como qualquer recém-licenciado à procura do primeiro emprego, Catarina Martins anda desenfreadamente a apagar aquilo que publicou online durante a puberdade.
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O Bloco de Esquerda, festejando os seus 20 anos, parece agora querer deixar a adolescência partidária e exercer o poder até agora reservado aos partidos em idade adulta. O problema é a ambiguidade com que o faz: Catarina Martins profere numa entrevista recente, com alguma altivez, que a expressão “extrema-esquerda até poderia ser ofensiva”; ao mesmo tempo, os bloquistas apagam rapidamente posts antigos do seu website (esquerda.net), para poderem agora dizer que nunca apoiaram o regime venezuelano. Em 2013, lia-se no website oficial bloquista que, “enquanto que na Europa a democracia está a falhar, na Venezuela a democracia participativa tornou-se um sinal de identidade”, a par com outros textos defendendo fervorosamente que “os principais meios de comunicação dos Estados Unidos, espanhóis e os da direita latino-americana trabalham arduamente para marcar a agenda informativa sobre a Venezuela com o objetivo de sedimentar a ideia de que estamos perante um ‘Estado falido’”. Como qualquer recém-licenciado à procura do primeiro emprego, Catarina Martins anda desenfreadamente a apagar aquilo que publicou online durante a puberdade.
Mas há que reconhecer algum mérito à coordenadora do BE, que replicava que a extrema-esquerda “é um insulto” porque está associada “a totalitarismos, a perseguição e a ódio”, acrescentando, num orgulho quase emproado, que, em nome da “raiz das lutas”, “esquerda radical” é o posicionamento acertado. E verdade seja dita que há uns tempos a esquerda.net dava voz ao atual líder da esquerda radical francesa, Jean-Luc Mélenchon — que privou da companhia de Marisa Matias na sua campanha —, nas suas declarações que consignavam “a nova Venezuela (como) a ponta da lança da onda democrática que, na América Latina, varreu os regimes oligárquicos de nove países”.
E há mais incongruências no posicionamento do Bloco. Embora de uma forma dissimulada, o Bloco alinha com as causas eurocéticas e populistas, num constante ataque à agenda europeia, como quando lembrou Catarina Martins à TSF que “os tratados europeus, tal como estão definidos, impedem Portugal de fazer investimentos necessários” e que “se for possível existir à esquerda quem defenda à esquerda estas alterações, seria importante”. Aponta ainda para o PS, dizendo que Costa “não é um aliado natural para matérias de política europeia”.
Esta alusão ao PS recorda-me que agora o Bloco, em jeito de demonstração da sua maioridade, quer deixar de ser um Partido de Protesto para passar a Partido Institucional. Na sua IX Convenção, o BE plasma a frase “Em 2019, o Bloco quer ser força de Governo”. O que mudou então de 2015 para cá? Relembro que o BE já teve a oportunidade de integrar o governo em 2015, mas Catarina Martins reiterou as suas profundas aversões à solução governativa, apresentando um projeto de apoio condicionado. Pôde assim manter a posição imberbe que prometia aos eleitores desde 1999: uma posição de força opositora, de protesto. Presentemente, assume-se como “força responsável”. Mas pouco ou nada de “responsável” se encontra nas propostas do Bloco, nas quais constam a “reestruturação da dívida e o controlo público dos sectores estratégicos da economia”, que, acrescentam, “permanecem a chave para uma governação à esquerda”. Ora, estas medidas lembram algo? Chávez começou por partidarizar as Forças Armadas, tendo como 2.º passo a nacionalização das grandes empresas dos sectores económicos mais importantes do país. Hoje, o Estado venezuelano está falido: a inflação chegou aos 80.000% em 2018 e o aumento do salário mínimo aos 30% (ligeira diferença de percentagens, que deve contar para as conquistas históricas). Num país cheio de petróleo, não há energia, não há comida, não há medicamentos, não há nada. É do pior que já vimos nos chamados países do “socialismo real”. Como acontece sempre que o socialismo é levado à sua consequência lógica, também agora dizem que, afinal, não era socialismo o socialismo que defendiam.
E Joana Mortágua, ao escrever que “a esquerda de que faço parte nunca foi ambígua sobre a condenação de regimes que oprimem o povo e sufocam a democracia”, nem repara na contradição em que cai, pois algumas linhas antes garantira que a sua atual revolta resultava de o chavismo ter passado “de projeto do povo a ditadura de caudilho”. Na verdade, o que o chavismo perdeu foi o seu caudilho, pois há muito que deixou de ser uma democracia respeitadora dos direitos civis.
Não deixa de haver parecenças entre a estratégia bloquista e a do seu aliado europeu, o Podemos – que chegou a ser uma espécie de ‘braço armado’ da revolução chavista no coração da União Europeia e que tem vindo a mitigar a “militância de género” (a qual, diga-se, praticou ao longo de vários anos). Estas estratégias do Bloco e do Podemos são esquemas de distorção e maquilhagem que visam agradar aos eleitores, não trazendo ao país mais do que insegurança política. Não esqueçamos o projeto de lei apresentado dia 11 de março pelo BE: à imagem do que o Podemos tentou fazer em Espanha com a RTVE (radiotelevisão pública espanhola), o BE propõe que o presidente da RTP passe a ser nomeado pelos deputados. Se em Espanha ficou claro que o Podemos quis foi negociar um lugar na administração da RTVE, fica também evidente o que o Bloco pretende. Nesta proposta, os bloquistas anunciam que querem acabar com o Conselho Geral Independente, para “garantir a independência” da RTP. Ora, isto não poderia soar mais paradoxal, pois Catarina Martins terá, com isto, mais margem para exercer mais poder sobre a instituição, violando a liberdade de imprensa, sob pena de a RTP se converter num aparelho de propaganda, de divisão, de manipulação e ódio.
Estas mudanças radicais deixam-me algo duvidosa quanto às bases instáveis do partido: alternância entre gritos na praça pública e a tentativa de sobriedade expurgam a maquilhagem que cobre o aparelho trotskista. Mas a evolução de partido de protesto a partido institucional não pode andar de mãos dadas com zigue-zagues ideológicos. E entre orçamentos aprovados e declarações contra medidas nesses orçamentos, é difícil olhar para o Bloco de Esquerda sem sentir umas tonturas. Mas pode ser só da idade. Porque o BE pode só agora ter ultrapassado a adolescência, mas os métodos são velhos e as ideias há muito ultrapassadas.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico