Refugiados da Palestina na Síria: uma história de devastação e coragem
Hoje em Yarmouk, como em outros campos na Síria, os refugiados da Palestina anseiam por regressar gradualmente às suas casas.
Quando visitei pela última vez o campo de refugiados de Yarmouk, em Damasco, fui confrontado com uma escala de devastação diferente de tudo o que já vi durante quase três décadas de trabalho em zonas de guerra, em todo o mundo.
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Quando visitei pela última vez o campo de refugiados de Yarmouk, em Damasco, fui confrontado com uma escala de devastação diferente de tudo o que já vi durante quase três décadas de trabalho em zonas de guerra, em todo o mundo.
Nestes campos em ruínas, pude ver, por toda a parte, sinais do terrível custo humano de um conflito implacável, que dilacerou a vida de milhões de sírios. Também me lembrei do que torna a tragédia dos refugiados da Palestina na Síria tão singular.
Antes da guerra, os jovens palestinianos que cresceram em Yarmouk passaram os primeiros anos das suas vidas a tentar compreender a história da sua família e do êxodo de cidades cujos nomes conhecem, mas que nunca viram. Ouviram as lembranças dos pais e dos avós e ansiavam uma solução justa para o seu sofrimento.
Eles estão também conscientes de que na Síria anterior à guerra, os seus pais tinham a dignidade de estar empregados ou de administrar os seus próprios negócios. Por outras palavras, eram, em grande parte, autossuficientes e asseguravam as suas necessidades de forma independente. Os seus filhos frequentavam as escolas geridas pela UNRWA e utilizariam os nossos centros de saúde, mas, por outro lado, não necessitavam de qualquer serviço de socorro ou emergência.
Quando o conflito começou e a luta envolveu vários dos bairros em que os refugiados da Palestina viveram durante décadas, eles tornaram-se numa outra geração de palestinianos que tem de suportar o trauma do deslocamento e da expropriação. Às histórias das suas famílias de 1948 e de 1967, os refugiados palestinianos mais jovens acrescentam agora seus próprios relatos dramáticos de perda de parentes, amigos, vizinhos, lares e meios de subsistência.
Dos 160 mil refugiados da Palestina que viviam em Yarmouk em 2011, apenas cerca de oito mil continuavam no campo no final de 2018. Tão orgulhosos estavam com o que haviam construído e tão marcados pelo que foi destruído, estes refugiados referem-se a Yarmouk como “a nossa pequena Palestina”.
O conflito no país também afetou os refugiados da Palestina em outros lugares da Síria. Havia 560 mil em todo o país, principalmente em Aleppo, Homs, Hama, Latakia, Damasco e Dera'a. Hoje, cerca de 440 mil refugiados da Palestina permanecem no país, mais de metade deles estão deslocados internamente, e quase todos necessitam de assistência humanitária. Aproximadamente 120 mil destes refugiados fugiram da Síria desde 2011 para o Líbano, a Jordânia e a Turquia. Na Síria, a UNRWA tem mantido os seus serviços sempre que possível em contexto de horrores da guerra, adaptando-se à mudança constante do conflito. A coragem e dedicação demonstradas pela nossa equipa, que manteve escolas e clínicas abertas durante as fases mais críticas, tiveram um preço alto. Dezoito colaboradores da UNRWA foram mortos e 28 estão desaparecidos desde o início do conflito.
Notavelmente, no meio da devastação, há também as histórias mais extraordinárias de sobrevivência e conquista. Em 2018, uma jovem aluna do 9.º ano das escolas da UNRWA, Aya Abbas, foi a estudante com melhor desempenho nos exames nacionais em toda a Síria. Aya nasceu em Yarmouk e teve que fugir do acampamento em tenra idade com a sua família. Apesar da imensa adversidade, perseverou, estudou muito e teve um sucesso notável.
De muitas maneiras, a sua história é a história dos refugiados da Palestina: muitas vezes são confrontados com o sofrimento individual e coletivo em grande escala e, no entanto, nunca estão preparados para desistir. Ela também exemplifica o apego dos refugiados da Palestina à educação, um campo no qual se destacam e se inspiram.
Durante todo o conflito na Síria, a UNRWA mostrou firmeza própria e o nosso compromisso tem sido forte para garantir educação em tempos de grande emergência. Quando as escolas não são acessíveis, distribuímos material de autoaprendizagem ou transmitimos programas de educação a partir de uma estação de televisão em Gaza.
Mesmo quando a UNRWA enfrentou a pior crise financeira de sempre, no ano passado, estávamos determinados a não deixar para trás os estudantes refugiados da Palestina na Síria. Quando, com o excelente apoio dos nossos parceiros e doadores, abrimos atempadamente o ano letivo para 50 mil meninos e meninas em setembro de 2018, foi um momento de celebração genuína.
Hoje em Yarmouk, como em outros campos na Síria, os refugiados da Palestina anseiam por regressar gradualmente às suas casas. Enquanto se discute o retorno seguro e voluntário dos refugiados à Síria, a UNRWA considerará a reconstrução ou reabilitação das suas escolas, centros de saúde e outras infraestruturas em Yarmouk, uma vez que todas foram totalmente destruídas ou gravemente danificadas pelos combates. Fizemos isso com sucesso em outros campos e exploraremos todas as oportunidades para melhorar a vida da comunidade tão profundamente afetada pelo conflito.
Devemos isso a Aya e a tantos outros. Não podemos simplesmente desistir.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico