Oleanna: um triunfo do teatro
A encenação de Ricardo Pais da mais discutida peça de David Mamet, Oleanna, regressa esta quarta-feira à Sala Estúdio do Teatro Sá da Bandeira, no Porto, para as últimas récitas. Um texto de quase perversa genialidade servido por uma brilhante direcção de actores.
Ricardo Pais, que nos habituou, na sua longa passagem pelo Teatro Nacional de S. João, a ambiciosas façanhas cenográficas – sirva de exemplo a deslumbrante cenografia que concebeu para al mada nada a partir da reutilização do cenário de Turismo Infinito –, decidiu, aos 73 anos, encenar e produzir às suas custas uma peça para apenas dois actores (e um telefone), a polémica Oleanna (1992), de David Mamet, que se estreou a 21 de Fevereiro na pequena Sala Estúdio Latino, do Teatro Sá da Bandeira, onde agora regressa para um derradeiro ciclo de cinco apresentações.
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Ricardo Pais, que nos habituou, na sua longa passagem pelo Teatro Nacional de S. João, a ambiciosas façanhas cenográficas – sirva de exemplo a deslumbrante cenografia que concebeu para al mada nada a partir da reutilização do cenário de Turismo Infinito –, decidiu, aos 73 anos, encenar e produzir às suas custas uma peça para apenas dois actores (e um telefone), a polémica Oleanna (1992), de David Mamet, que se estreou a 21 de Fevereiro na pequena Sala Estúdio Latino, do Teatro Sá da Bandeira, onde agora regressa para um derradeiro ciclo de cinco apresentações.
Oleanna, cuja acção decorre integralmente num gabinete universitário onde um professor e uma aluna têm três encontros sucessivos, correspondentes aos três actos da peça, foi encenada pelo próprio Mamet em 1992, com William H. Macy no papel de John, um professor universitário autocentrado, palavroso e petulante, e Rebecca Pidgeon (com quem o dramaturgo se casara em 1991) a vestir a pele de Carol, uma aluna desorientada e ansiosa, mas que desde o início dá também sinais de um difuso ressentimento (contra o meio de onde vem, contra o sistema, contra si própria), que não tardará a sublimar-se no contacto com o jargão do feminismo e a ser, a partir de então, implacavelmente direccionado para a destruição do seu interlocutor, que acusa primeiro de assédio e depois de tentativa de violação.
Escrito por um dotadíssimo manipulador, o texto conduz impiedosamente os espectadores à armadilha de se sentirem compelidos a tomar partido por uma das personagens. Quando Mamet adaptou a sua peça ao cinema, em 1994, o cartaz do filme avisava: “Ele disse que foi uma aula. Ela disse que foi assédio sexual. Seja qual for a sua posição, está enganado.”
Por essa altura, já as reportagens das primeiras apresentações da peça em palco estavam cheias de relatos de discussões acaloradas, de casais desavindos, de aplausos e vaias. Uma invulgar capacidade de dividir que transitou intacta para a crítica especializada, com recensões que vão do elogio hiperbólico a acusações de conservadorismo, misoginia, sexismo.
Não é fácil negar que o autor constrói a sua trama de modo a que as acções da aluna nos pareçam mais censuráveis do que as do professor, mas o verdadeiro risco da peça não é esse: é o de podermos duvidar da sinceridade de uma ou de outro, sobretudo no primeiro encontro entre ambos, em que ficam desde logo determinados os catastróficos desenvolvimentos subsequentes, sempre anunciados a John, e depois através dele à plateia, por um telefone que parece encarnar a figura trágica do destino. “O Mamet diz que o telefone é o coro grego, que vem trazer a realidade, até que se perceba quem de facto é culpado pela peste em Tebas”, lembra Ricardo Pais.
Se a assistência se convencesse de que um dos “contendores”, ao entrar na arena, estava já a usar de dissimulação ou má-fé, toda a tensão se desmoronaria, o que faz de Oleanna uma peça em que, talvez acima de tudo o resto, importe o talento dos intérpretes e o rigor na direcção de actores. E tanto Pedro Almendra como Mafalda Lencastre se mostram inteiramente à altura das circunstâncias, o que é tanto mais notável se pensarmos que tiveram apenas um mês e meio para ensaiar um diálogo composto por dois monólogos que mal se tocam, expresso em fragmentos de fala que só por excepção se organizam numa frase com princípio, meio e fim, e que ainda por cima é constantemente interrompido por um telefone com um talento sobrenatural para tocar nos raríssimos momentos em que um dos interlocutores parecia quase disposto a efectivamente ouvir o outro. A peça usa uma eficaz tradução portuguesa de Pedro Mexia, já lançada em livro pela Tinta da China.
Sabotando visualmente qualquer tentação de uma leitura da peça demasiado ligada à presente explosão do movimento Me Too, Ricardo Pais optou por uma encenação que cria um espaço ligeiramente rétro, com uma secretária e duas cadeiras de madeira, um telefone com fio ao estilo dos que se usavam no início dos anos 90, e um conjunto de painéis de Filipe Cortez que parecem pedaços de paredes esfoladas e manchadas.
Quando o telefone toca
É difícil dizer qual das personagens de Oleanna é mais irritante. John, com a sua petulância e a sua pose de rebelde anti-sistema, incapaz de reconhecer que as suas aspirações – vínculo laboral, casa dispendiosa, estatuto social – não podiam ser mais convencionais, ou Carol, com a sua atitude passivo-agressiva, oscilando entre a autodepreciação e o ataque a um sistema ao qual censura não ter sido feito à sua medida.
No primeiro acto, Carol vai ao gabinete de John para saber que nota terá no seu trabalho. É para ela vital passar de ano, mas receia chumbar, já que não percebe nada do livro que o professor escreveu e utiliza nas aulas. Comprou-o e leu-o, como lhe disseram para fazer, mas esbarra na linguagem e nos conceitos. Explica que para ela é “difícil”, que tem “problemas”, que vem “de um meio social dif...” [é interrompida antes de acabar a palavra]. John começa por a ouvir distraidamente. O conselho científico da universidade anunciou que o passará a efectivo (só falta formalizar a nomeação) e o professor anda com a cabeça ocupada na compra de uma casa nova para a família.
A peça começa justamente com John ao telefone a discutir detalhes do negócio imobiliário com a mulher e a dizer-lhe que vai já ter com ela, enquanto Carol aguarda que a chamada termine. Se no início, preocupado em não deixar escapar a moradia, tenta despachar rapidamente a aluna, a aflição de Carol parece comovê-lo e decide-se a ajudá-la. Mas as suas tiradas sobre a irrelevância dos formalismos académicos, argumentando, por exemplo, que os testes são “lixo, uma anedota”, só conseguem perturbar ainda mais a aluna. E, quando esta começa a exaltar-se, tenta acalmá-la e passa-lhe um braço pelos ombros, gesto a que Carol reage mal. No entanto, quando o professor conta que em criança também lhe diziam que era estúpido e que se sentira um falhado e que tinha problemas com a mulher, há um momento em que a aluna baixa as defesas e está prestes a confidenciar-lhe algo importante, e ele parece estar finalmente disposto a ouvi-la. “Nunca contei isto a ninguém...”, começa Carol. Mas, no instante em que ia fazê-lo, o telefone toca, é a mulher de John, este não consegue abreviar a conversa, o momento passou.
E quando, decorrido um intervalo de tempo presumivelmente não muito curto, Carol volta a entrar no gabinete de John, o seu vestuário, o cabelo agora apanhado, o modo seguro de andar, denunciam desde logo uma transformação radical. Ficamos a saber que apresentou uma queixa de assédio contra John e que este se arrisca a perder a nomeação, caso o conselho científico a venha a considerar fundada. Carol fala agora em nome do seu “grupo”, e se no primeiro encontro o poder de John se exercia no perfeito controlo de uma linguagem que a sua interlocutora não dominava, é agora ele que não percebe as motivações de Carol e não sabe como há-de lidar com o seu novo discurso, que o retrata como sexista, classista, manipulador, pornográfico. Quando a aluna se prepara para sair, John, ainda acreditando que poderá convencê-la a retirar a queixa, pede-lhe que fique e agarra-a por um momento, gesto que lhe virá a custar uma nova e mais grave acusação, que lhe arruinará definitivamente a vida: tentativa de violação.
Numa crítica à produção original de 1992 escrita para o New York Post, Clive Barnes observa com humor que o professor não enfrenta a verdadeira competição para ganhar a simpatia dos espectadores, já que Mamet o lança nas mãos de “uma agente provocadora aparentemente agindo ao serviço de um grupo multiculturalista extorsionário”. E Jeremy Gerard profetiza na Variety que “ninguém acreditará que as falhas de John o tornam merecedor das consequências que sofre”. Mas a questão só seria decisiva se recusássemos a John e Carol o estatuto de genuínas personagens, reduzindo-os a meros rótulos de perspectivas ideológicas conflituantes.
Uma utopia falhada
É possível que esta seja uma peça sobre os riscos de desumanização que se correm quando uma justificada censura social sobre comportamentos inaceitáveis se transforma numa campanha de esterilização das relações humanas. Conversar, mesmo acerca de trivialidades, argumenta John quando ainda tenta persuadir Carol a retirar a queixa, é “concordarmos que somos humanos”.
O que também pode sugerir que a utopia falhada evocada no título – Oleanna é o nome de uma experiência social comunitária fracassada de emigrantes noruegueses na América – seja a da crença na comunicação humana. E esta seria então uma peça sobre linguagem e (in)comunicação: é literalmente por falarem que John e Carol se condenam.
Mas também se pode argumentar que o tema central é o da relação entre o poder e o domínio de uma linguagem específica. Logo no telefonema que abre a peça ouvimos John repetir, a propósito da (significativa) expressão “servidão de passagem”, que “estamos obrigados” ao “jargão jurídico”.
“Os textos de Mamet são muito armadilhados, nunca se sabe bem o que lhe vai na cabeça”, diz Ricardo Pais. “Ele fixa-se no princípio stanislavskiano de que o teatro se faz de personagens com objectivos diferentes, que se chocam e geram a acção, mas nesta peça nada é evidente, porque não temos domínio da psicologia de nenhuma das personagens.”
O encenador não subscreve a ideia de que esta seja uma peça sobre assédio sexual, mas também não a reduz a uma reflexão sobre o poder da linguagem. “Saber quem tem razão foi sempre o destino desta obra, mas isso não me atraiu nada”, diz. “Escolhi-a, porque é uma peça fantástica, com uma malha apertadíssima: numa hora e meia vemos as personagens evoluírem de um extremo ao outro, com uma agilidade de diálogo tremenda.” E precisa: “Há aqui uma espécie de batida quebrada do ritmo da fala que é ela própria um avanço estilístico extraordinário sobre o piscologismo e sobre a grande tradição do realismo americano, de Arthur Miller, Tennessee Williams e todos os outros.”
Para Ricardo Pais, o que as duas personagens têm em comum é “um desencontro absoluto com a sua própria verdade”, e é isto que “provoca situações quase de vida ou morte” e faz de Oleanna “uma peça sobre a sobrevivência”. E argumenta: “O desencontro é um tema da comédia, mas a peça é definitivamente trágica, e é esse balanço entre uma coisa e outra que Mamet faz quase com humor negro, pelo modo como escreve o diálogo, que me fascinou.”
E conclui: “Continuo a achar que isto é essencialmente um exercício de teatro, e não de ideologia.” E quem for esta noite ver Pedro Almendra e Mafalda Lencastre enfrentarem-se em três duros rounds concordará que o único vencedor da noite, e por KO, é o teatro.