A imortalidade do escritor falhado
Serguei Dovlatov esteve três décadas a escrever sem conseguir publicar. O regime soviético via na sua literatura uma ameaça, não entendia a ironia, nem o estilo inovador. Conseguiu o reconhecimento no exílio em Nova Iorque, cidade onde morreu aos 48 anos, longe de saber que seria considerado um dos grandes prosadores da Rússia.
“Quem se interessará pelas confissões de um literato falhado?”, interroga-se o narrador de O Ofício, novela dividida em dois livros, romance composto por duas novelas ou, quem sabe, o diário ficcional de um escritor que desafiou a norma e é hoje — 19 anos passados da sua morte — considerado um dos mais brilhantes prosadores russos. Vem identificada como novela em duas partes e é esse o pressuposto que vamos seguir para falar de um livro que foge a rótulos.
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“Quem se interessará pelas confissões de um literato falhado?”, interroga-se o narrador de O Ofício, novela dividida em dois livros, romance composto por duas novelas ou, quem sabe, o diário ficcional de um escritor que desafiou a norma e é hoje — 19 anos passados da sua morte — considerado um dos mais brilhantes prosadores russos. Vem identificada como novela em duas partes e é esse o pressuposto que vamos seguir para falar de um livro que foge a rótulos.
No ano em que formulou a pergunta — 1976 —, Serguei Dovlatov (1941-1990) tinha escrito “um romance, sete novelas e quatrocentas peças curtas. Nada estava publicado. Ele queria ver cumprir-se um direito que considerava “inalienável”: “O direito a tornar público o resultado da sua escrita. Isto é, o direito à imortalidade ou ao fracasso.” Quase só conheceu o último apesar de ter vislumbrado o sucesso nos últimos anos da sua vida, durante o exílio em Nova Iorque.
“Na década de 1960, era um jovem escritor com grandes pretensões. A minha ambição era inversamente proporcional às oportunidades reais. Ou seja, a falta de oportunidades dava-me o direito de me considerar um génio não reconhecido. Todos os meus amigos raciocinavam da mesma forma. Pensávamos: ‘Seremos publicados no Ocidente, e toda a gente saberá quão geniais somos!” O falhanço de que fala Serguei Dovlatov através do eu narrativo do texto resulta dessa expectativa elevada: a de alguém que pretendia afirmar-se no mundo literário russo numa altura em que a União Soviética queria tudo menos a originalidade em relação a um cânone propagandístico ou de paz com o regime. Dovlatov nunca preencheu esses requisitos e a falha nasceu disso.
O Ofício traz dois momentos da vida da personagem Dovlatov. Em Leninegrado, no período Bresnev, com uma passagem por Tallin, capital da Estónia, então sob domínio soviético, e o do exílio em Nova Iorque. Através de uma escrita muito próxima da oralidade, sabemos das vicissitudes de um homem que encara uma folha de papel em branco como uma felicidade e como uma maldição. Escritor, jornalista, depende de um regime a que não se ajusta para mostrar não apenas o seu talento como para sobreviver. É esse relato, em forma de tiradas breves, que está em O Livro Invisível, a primeira novela deste volume, a marcar o tom satírico, confessional, algo nostálgico, auto-irónico marcado pela indagação acerca da escrita enquanto ofício, ou oficina. Joseph Brodsky, poeta, Nobel da Literatura era 1987, e grande amigo de Dovlatov, escreveu sobre ele: “O seu tom é o de um indivíduo que não se resigna a ser classificado como vítima, que não se sente obcecado com aquilo que o torna diferente”; e dizia mais, que ele rejeitava a “tradição trágica da literatura russa”. São palavras reproduzidas no prefácio — tão sintético quanto esclarecedor — à edição portuguesa, assinado por Júlio Henriques. Aí, Henriques lembra a este propósito, que estudiosos de Dovlatov afirmam “que ele criou a nova linguagem russa que se fala hoje, subentendendo que a sua arte literária contribuiu para libertar a língua russa dos atavismos estalinistas acumulados durante décadas.”
O tom é o do quotidiano, de uma rua frequentada por literatos, aspirantes a literatos, sobreviventes, presos políticos, gente que se vende ao sistema ou de incomodados que pagam o preço de serem considerados suspeitos pelo regime, um preço que pode ser a prisão. É caso dele, Dovlatov, e da sua personagem. Ele olha-se a si e a toda essa gente a partir de um ponto trágico-irónico, a uma distância que permite o humor e a análise social e intelectual, sempre com um pressuposto: o de descrever o “reverso da vida”. É esse o mote de um livro iniciático, Notas de Um Guarda Prisional, texto eternamente rejeitado que parte de uma conclusão: “Os políticos e os ladrões são de uma semelhança extraordinária. Os reclusos em regime especial e os guardas prisionais são igualzinhos. A linguagem, o modo de pensar, o folclore, os cânones estéticos, as orientações morais. Este é o resultado da influência recíproca. Em ambos os lados do arame farpado — o mesmo mundo cruel.”
Dovlatov, mais uma vez personagem e autor, não consegue sobreviver a não ser que se curve perante o sistema, o que chega a acontecer e faz-se acompanhar de boa dose de frustração. Esse é o fulcro de O Livro Invisível. O escritor não é publicado a não ser quando cede em artigos de jornal onde não se revê nem ao seu estilo.
Na segunda parte, O Jornal Invisível, Dovlatov está em Nova Iorque, no exílio entre outros literatos excluídos, a viver numa terceira vaga de emigração russa, e a fundar um jornal para a comunidade expatriada do seu país, mal falando inglês. “O início da minha vida na América foi muitíssimo sereno. Durante uns seis meses, como convém a um literatura russo, preguicei no sofá.”
A aposta é viver da escrita. Como na Rússia, consegue a escrever em jornais, e contra a sua expectativa vê um dos seus contos publicados da revista New Yorker. Será o segundo escritor russo a conseguir esse feito, depois de Nabokov. O jornal onde trabalha vai-se afundando e Dovlatov, o escritor, ganhando fulgor público. Tem um segundo conto publicado na mesma revista, um contrato para um romance e ambivalência que sempre o acompanha. No caso, a certeza de que o paraíso não existe. Nem na América, que se vai revelando nas suas imperfeições e onde, depois de pedir a imortalidade na Rússia, aspira ao anonimato em Manhattan. Isto, enquanto interroga o ofício e os seus candidatos, escrita e escritores, e, sobretudo. a si mesmo.
A última frase de O Ofício é de 1984. Serguei Dovlatov morreria seis anos depois, com parte da sua obra a ser publicada pela primeira vez em língua inglesa. A partir de 1990, o seu país reconhece-lhe o talento e Dovlatov passa a ser lido em russo, a língua em que sempre escreveu, e a ser respeitado como um dos grandes. Também o cinema lhe viu a chama. Em 2015, Stanislav Govorukhin adaptou um dos seus livros de contos, Kompromiss, num filme com o título Fim de Uma Época Magnífica. E em 2018, chegou Dovlatov, de Alexei German Jr, que acompanha seis dias da vida do escritor em Leninegrado. O génio já tem direito à sua imortalidade.