Nélida Piñon: “Acha que posso ser pouco? Um escritor não é para ter vida resumida”
Quanto pode caber num livro que começou com uma sentença de morte? Quase tudo. Uma Furtiva Lágrima assinala o fim de um ano de vida da escritora brasileira Nélida Piñon em Portugal. Contém literatura, música, arte, ética, política, uma grande atenção ao quotidiano e a confissão de que ser Deus é uma tentação para o escritor, mas o resultado sai sempre falhado.
A jornada de Nélida Piñon por Portugal chegou ao fim. Durante um ano, a mulher mais jovem de sempre a integrar a Academia Brasileira de Letras (1990), Prémio Príncipe das Astúrias de Letras em 2005, romancista, contista, ensaísta, cronista, autora de memórias, viveu em Lisboa para escrever um romance passado em Portugal. Não adianta muito sobre isso. Apenas que o livro está adiantado. Antes de regressar ao Brasil, publica Uma Furtiva Lágrima (Temas e Debates), quase um manual sobre os temas da sua literatura. Começou por ser o diário de uma sentença de morte e acabou num conjunto de textos breves. São ideias, confissões de uma escritora brasileira, também galega, uma mestiça, imigrante, atraída pelos clássicos, apaixonada pela língua portuguesa e pela música a que retirou o título, nada mais que a uma ópera de Donizetti. “Pois foi”, confirma Nélida Piñon, sorriso de olhos quase fechados no fim de uma conversa onde conta como a sentença não se cumpriu e deixou clara a sua comoção com o Brasil, agora, na hora do regresso, aos 81 anos, a agendar para Abril o lançamento da edição brasileira desta espécie de preparação para a morte.
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A jornada de Nélida Piñon por Portugal chegou ao fim. Durante um ano, a mulher mais jovem de sempre a integrar a Academia Brasileira de Letras (1990), Prémio Príncipe das Astúrias de Letras em 2005, romancista, contista, ensaísta, cronista, autora de memórias, viveu em Lisboa para escrever um romance passado em Portugal. Não adianta muito sobre isso. Apenas que o livro está adiantado. Antes de regressar ao Brasil, publica Uma Furtiva Lágrima (Temas e Debates), quase um manual sobre os temas da sua literatura. Começou por ser o diário de uma sentença de morte e acabou num conjunto de textos breves. São ideias, confissões de uma escritora brasileira, também galega, uma mestiça, imigrante, atraída pelos clássicos, apaixonada pela língua portuguesa e pela música a que retirou o título, nada mais que a uma ópera de Donizetti. “Pois foi”, confirma Nélida Piñon, sorriso de olhos quase fechados no fim de uma conversa onde conta como a sentença não se cumpriu e deixou clara a sua comoção com o Brasil, agora, na hora do regresso, aos 81 anos, a agendar para Abril o lançamento da edição brasileira desta espécie de preparação para a morte.
Uma Furtiva Lágrima nasce de uma sentença de morte que não se cumpriu.
É verdade. Passaram-se três anos e aparentemente tudo bem. Mas o escritor escreve por qualquer razão, qualquer pretexto. Não é todo o dia que alguém me diz que vou morrer. Foi uma novidade. Não quer dizer que eu não tivesse idade, seria até razoável, mas eu não estava pensando em morrer, estava com projectos e, de repente surge isso na minha vida, uma sentença inesperada. Associo essa sentença a um teste à minha dignidade, eu tinha de saber morrer, queria educar-me, havia uma pedagogia da morte. Era muito importante para a minha vida como a vivi, nas opções que fiz, no modo como sou feminista, mulher, escritora, como entendo a dignidade da escrita, os compromissos morais, éticos, etc. Disse: tenho de morrer bem. Foi isso que me levou a imaginar as consequências de uma sentença: morrer bem. Com elegância, se possível. Encarei tudo com muita naturalidade, pelo menos naquele momento. Agora teria outra reacção, porque depois de tudo sou outra. Somos outros em cada avanço pela vida. O grande problema da nossa sociedade é imaginar que o que somos é imutável. Há pequenos sobressaltos e pequenas mudanças ao longo da vida. Isso dá-me uma sensação de progresso, de avanço quase tecnológico, se é possível falar em tecnologia em termos existenciais. Eduquei-me a ser assim, a imaginar que há na vida uma metamorfose contínua. E os resultados são óptimos, não há que reclamar das mudanças.
Este é um livro cheio de referências clássicas.
Faz parte da minha formação intelectual. Não é pretensão.
Diz: “sou mestiça e gosto”, e que é “filha da imigração”.
É verdade. Antes não dizia isso porque não tinha a noção que tenho hoje. Tenho muita noção do que a minha família fez com dignidade. Aos dez anos vim à Península Ibérica, passei praticamente dois anos na Galiza, eu falava galego, desenvolvi o meu imaginário, que era brasileiro e produto das leituras. De repente, olhava para a linha do horizonte nas aldeias galegas e tinha a sensação de que via uma cavalgada. Imaginava os etruscos, os celtas, os visigodos. Todos foram meus íntimos, até hoje. Depois estudei num colégio alemão. Até hoje não sei por que razão os meus pais imigrantes quiseram que eu estudasse com beneditinos, alemães, mas foi uma maravilha, apaixonei-me por Lutero, e a madre da minha classe tinha pavor de que eu pudesse ser convertida ao protestantismo.
O que a fascinava em Lutero?
O brilho, a inteligência, a vontade que ele teve de derrubar Roma. Ao mesmo tempo eu era uma estudiosa de Carlos V que queria defender o catolicismo, o mundo romano. E estudava a Bíblia. Por mais católico que fosse o meu colégio, o alemão sente atracção pelo Antigo Testamento e eu estudava o Antigo Testamento e brigava com Deus porque o achava machista. Tudo isso foi maravilhoso para mim.
A paixão por Wagner também nasceu na Alemanha?
Talvez, mas a paixão é pela música. A música ajuda-me muito a escrever. Em determinados momentos, dependendo do sentimento que quero empreender a um texto, vou a uma certa música. Gosto muito das fusões dos deuses alemães, dos nibelungos; quanto mais antigos os temas, mais gosto. Gosto dos monges perniciosos de Carmina Burana, dos padres do deserto do século IV. Tudo isso me predispôs para imaginar as metamorfoses da vida e acentuou o meu amor à literatura. Tenho um grande amor à literatura. Nunca fui infiel à literatura.
É a única fidelidade?
Não a única, porque sou fiel a princípios, a valores, mas faço qualquer sacrifício pela literatura, para escrever bem, para melhorar.
“Sinto-me atraída pelo pensamento alheio”, escreve. É um lado bisbilhoteiro?
É o lado da ficcionista. Deus me livre se eu ia achar isso desinteressante!
Saber o que se come ao pequeno-almoço, por exemplo?
Adoro. É um detalhe maravilhoso. Não tenho muito interesse em saber a intimidade sexual porque gosto de chegar a ela inventando a partir de uma certa sabedoria que tenho obrigação de ter acerca da anatomia e o que isso pode fazer em matéria de atritos. Não sou de fazer perguntas inconvenientes. Gosto muito de ficar olhando. Não sou distraída. Arrisco a dizer que sigo os transtornos humanos. Sou uma entusiasta do ser humano. Uso muito a palavra “vizinho”. É emblemático; um símbolo do humano. Senti que usando “vizinho” eu falava tudo, era o colectivo. O vizinho é um contemporâneo de vida, é um conglomerado. Tem alma, tem um corpo.
Porque é que amigos seus estranham o seu gosto por literatura americana?
A Natália Correia estranhava. Não conseguia entender como eu era entusiasta do mundo anglo-saxónico. Ela odiava. Tínhamos conversas maravilhosas sobre o mundo medievo. Mas eu desde cedo li literatura inglesa, apaixonei-me pela Inglaterra, e a literatura americana é uma grande literatura. Só Faulkner! É um grego americano. Há pessoas que não sabem porque é que fazem um certo tipo de literatura, mas beberam muito dos americanos. Veja Moby Dick, os poetas.
Refere que a literatura americana tem muito que ver com a identidade. A brasileira não?
É diferente. É uma identidade forte e acho que está também muito na literatura. Veja a questão indígena em José de Alencar. Ele faz o que [Fenimore] Cooper fez com os índios nos Estados Unidos, mas com muita independência. O índio como personagem idealizado, uma coisa de grande coragem. De certo modo, junto com Machado de Assis — embora Machado seja de um refinamento extraordinário —, tem uma preocupação com essa identidade, quem somos nós, e tenta liberar o pensamento narrativo brasileiro um pouco como Borges fez na Argentina: cada um está autorizado a escrever sobre o que quer que seja. É muito importante não se ser prisioneiro dos temas fixos. Machado de Assis, com a preocupação de uma possível identidade brasileira, escreveu um texto chamado Instinto de Nacionalidade, e ele e Alencar dizem-nos como se pode ser um escritor; o que podemos fazer para enriquecer a trajectória cultural do Brasil.
Sobre a sua identidade, confessa-se uma híbrida. Fala-me do seu hibridismo.
Sou muita coisa mesmo porque nunca quis ser só o que eu era.
Porquê?
Porque era pouco. Acha que posso ser pouco? Um escritor não é para ter vida resumida, um retrato de três por quatro.
Há um capítulo chamado “Resumo” em que afirma que se nega ao resumo.
Sempre achei que tinha de expandir o horizonte da minha vida. Digo que tinha de ser múltipla, ser muita gente ao mesmo tempo. Uso uma expressão que até repito de mais: Proteu; ter de assumir várias formas. Não posso ser só mulher. Não vou conseguir escrever se não for mulher, homem, bicho, vegetal...
Deus?
Deus é uma tentação. Porque, de certo modo, um escritor é um deus, mas acaba derrotado pelas personagens. Os hebreus inventaram o monoteísmo, que é o supremo refinamento da abstracção. Para escrever, tenho de entender o espírito do corpo de um homem e de uma mulher.
Diz-se feminista.
Sim, mas eu sou histórica, muito mais do que todas essas. Essas não conheceram as dificuldades que eu conheci. Mas quero ser uma escritora com autoridade para assumir o corpo de um homem e de uma mulher, ou a literatura morre. Acho que a arte é um mistério, nasce do caos; sem o caos não há substrato, não tem material, não tem arqueologia. Depois é preciso trabalhar esse caos. Cada um de nós é constituído por uma genealogia vasta e, quanto mais se sabe, melhor vamos compor as personagens, entender que são dificílimas, que nos detestam, com elas estamos numa luta para ver se entramos num acordo. A personagem precisa de um acordo para existir.
Neste livro estão os temas que povoam a sua literatura, ideias para reflexão, entre elas saber até que ponto a América se deve também culpabilizar pela sua história.
O passado deve ser uma eterna aprendizagem. Não dá para corrigir o passado da forma que muitos pretendem. Os historiadores não sabem tudo. Há a parte documental, mas essa não traz os sentimentos. Há suposições nossas. Nós não temos condições de perdoar, mas também não temos condições de dizer: vamos apagar isso. Foi assim e nós sabemos. A minha tarefa é nunca mais permitir isso. Há tanta coisa que continuamos a ignorar, coisas que não nos deixam saber, e vivemos num regime de acomodação.
A acomodação explica o que se está a passar politicamente em muitos lugares?
Acho que sim. Somos muito pobres com as nossas convicções. Não temos convicções certeiras e somos também vítimas de mensagens equivocadas e não sabemos tudo o que está acontecendo ao mesmo tempo. A realidade é tão poderosa, tão difícil; é geológica, camadas e camadas e não sabemos responder pelos milhões de camadas. Mudamos de ideias constantemente, e também somos agarrados pelas ideologias que exploram o nosso desconhecimento, e muita gente ganha muito dinheiro com as ideologias.
Sobre os políticos: “São uns pobres diabos revestidos de falsa magia.”
Pois são. São muito fracos, começando pela sua oratória, falam mal a língua, pensam com grande banalidade.
Uma coisa de que a sua mãe a acusou quando era criança.
Muito bem observado. Isso foi fundamental na minha formação. Ela fez-me ver que se podia falar bem, porque se eu tinha o pensamento — e ela achava que eu devia ter porque achava que eu era inteligente —, eu tinha de dar provas de que era inteligente. Ela dizia: “Minha filha, você é uma menina inteligente, mas fala mal. Você tem de fazer ver aos demais aquilo que você pensa.”
Falta aos políticos actuais pensamento ou verbo?
Tudo. Coitados, eles não sabem por onde estão indo, e o pior é que dominam as nossas vidas. Para não falar do grau de corrupção.
Voltou ao Brasil depois das eleições?
Não. Estou há um ano fora.
Está expectante?
Estou tranquila. Confio no destino do Brasil. Com os nossos desatinos, as nossas dificuldades. Acho que o tempo sana muitas feridas. Viu os absurdos da Europa? Entende a Europa? O populismo na Europa? A elite também abandonou o povo. Porque é que vou ser muito mais severa com o Brasil? O mundo de hoje precisa de grandes estadistas, e não os temos.
"No teatro carioca, as classes sociais simulam entender-se no período carnavalesco ou diante de uma desgraça.” Há uma dissimulação social?
As classes sociais têm as suas defesas, dificilmente incorporam o povão no seu salão. Finge-se que há uma democratização. Não só no Rio. Ainda não se deu uma integração completa. Os preconceitos perduram, melhoram um pouco, mas perduram. Preconceitos étnicos, sexuais. É muito difícil extirpar isso. Temos de ficar atentos, as leis são muito importantes. A sociedade aprimora-se na lei. Não na lei nazi, claro, mas na lei feita por um congresso eleito pelo povo. Se o congresso é desastrado, você é responsável.
O escritor pode fazer o quê?
Coitado, ter consciência já é muito. Mas escrever. E, se puder, falar quando necessário. Mas a tarefa principal do escritor é escrever bem.
Entendeu este voto brasileiro?
Que voto?
Em Bolsonaro?
Entendi, claro. Quem elegeu Bolsonaro foi o PT.