Um parecer absurdo que vale a pena desvalorizar
Entrar num debate eivado de nacionalismo que episodicamente contamina a política do pais vizinho é um risco que põe em questão a proximidade e a amizade que une dois países democráticos e europeus.
O relatório da Real Academia de História da Espanha foi escrito com o anunciado propósito de “evitar que a comemoração [dos 500 anos da viagem de circum-navegação por Fernão de Magalhães] se converta numa fonte de dissidências entre os dois países vizinhos”. O objectivo falhou clamorosamente.
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O relatório da Real Academia de História da Espanha foi escrito com o anunciado propósito de “evitar que a comemoração [dos 500 anos da viagem de circum-navegação por Fernão de Magalhães] se converta numa fonte de dissidências entre os dois países vizinhos”. O objectivo falhou clamorosamente.
Numa altura em que Portugal e a Espanha ensaiam uma candidatura conjunta da viagem a Património Mundial da UNESCO, a declaração da Real Academia de História de que “é incontestável a plena e exclusiva espanholidade da empresa” só pode acirrar velhas animosidades que a integração europeia e a democracia haviam remetido para o baú da memória. O que há então a fazer? Acreditar que a posição da academia contraria uma posição historiográfica aberta e moderna sobre o tema e, pelo contrário, revela uma tese de forte pendor nacionalista; e manifestar uma posição aberta e cosmopolita que aprofunde a amizade ibérica através da recusa destes manifestos.
Não faltam caminhos para se adoptar uma e outra posição. Afinal, a viagem só foi um sucesso porque foi dirigida inicialmente por um navegador português que conhecia a rota ocidental do Atlântico. Essa rota tinha sido explorada na sequência de saberes acumulados por árabes, italianos e portugueses. Na tripulação de Magalhães havia 239 marinheiros de nove nacionalidades, dos quais 32 eram portugueses.
Pretender que a façanha do navegador é portuguesa é um disparate histórico porque, na verdade, ela foi essencialmente espanhola através do patrocínio e do financiamento do Estado espanhol. Mas dizer que a empresa foi “exclusivamente espanhola” não é um disparate menor.
Resta por isso desvalorizar a pulsão patrioteira de alguma imprensa do país vizinho e a tese da “Surreal Academia da Direita Espanhola”, como lhe chamou Rui Tavares na edição desta segunda-feira do PÚBLICO, e enquadrar as comemorações num tempo histórico comum, em que Portugal e a Espanha dominaram os mares.
Atribua-se o protagonismo devido a Fernão de Magalhães, mas reconheça-se o sentido de oportunidade e a inteligência estratégica da coroa espanhola e, evidentemente, a enorme responsabilidade de Juan Sebastián Elcano no cumprimento da viagem. Entrar num debate eivado de nacionalismo que episodicamente contamina a política do pais vizinho é um risco que põe em questão a proximidade e a amizade que une dois países democráticos e europeus – até porque também por cá o umbiguismo da História é capaz de desenterrar os piores demónios.
Os dois governos devem por isso celebrar o que merece ser celebrado: a visão do seu passado comum cimentada pelos factos e não pelas ideologias que os pretendem contaminar.