Descoberto mecanismo de defesa nos rins contra a malária
Através de experiências com ratinhos, cientistas em Portugal encontraram, pela primeira vez, um mecanismo nos rins que está envolvido na protecção contra a malária.
Nada o fazia prever, mas foi nos rins de ratinhos que uma equipa de cientistas do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, encontrou um mecanismo que nos protege da malária. Se este mecanismo não funcionar, morre-se de malária. Publicada na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), esta descoberta inesperada ajuda a explicar o desenvolvimento de problemas renais em pessoas que sofrem de malária grave.
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Nada o fazia prever, mas foi nos rins de ratinhos que uma equipa de cientistas do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, encontrou um mecanismo que nos protege da malária. Se este mecanismo não funcionar, morre-se de malária. Publicada na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), esta descoberta inesperada ajuda a explicar o desenvolvimento de problemas renais em pessoas que sofrem de malária grave.
Para nos explicar no que consistiu esta descoberta, Miguel Soares – cientista do IGC que coordenou o trabalho – indica que há muitos anos que está interessado num fenómeno chamado “tolerância à doença”, conceito que surgiu há 150 anos no estudo das plantas. “Há um século e meio, as pessoas aperceberam-se que havia plantas, como o trigo, que quando eram infectadas por uma bactéria ou fungo paravam de dar sementes. Mas desenvolveram-se algumas variantes dessas plantas que, embora estivessem infectadas, continuavam a dar sementes”, refere o investigador. “Percebeu-se então que as plantas têm um mecanismo de defesa contra a infecção, a tolerância à doença.”
Nos últimos anos, percebeu-se que este mecanismo de defesa também existia em animais: primeiro identificou-se na drosófila (mosca-da-fruta) e depois no ratinho. A equipa de Miguel Soares tem estudado este mecanismo no choque séptico ou na malária. E, segundo o artigo científico, mais de 98% das pessoas infectadas com malária sobrevivem, em parte devido à tolerância à doença. Mesmo assim, todos os anos há cerca de 450 mil mortes.
“Apercebemo-nos que há mecanismos de defesa contra a malária que não têm nada a ver com a capacidade de eliminar o parasita [Plasmodium] mas estão relacionados com a indução destes mecanismos na tolerância à doença”, frisa o investigador. Ou seja, há mecanismos que fazem com que diferentes órgãos de um animal consigam funcionar quando já está infectado com malária.
Entretanto, descobriu-se que o mecanismo que cria esta protecção contra a malária é dependente da enzima heme-oxigenase-1. Esta proteína é produzida por um certo gene nos tecidos do organismo quando são expostos a stress oxidativo e tem a capacidade de degradar os grupos heme (que contém átomos de ferro), que existem na hemoglobina (molécula que assegura o transporte de oxigénio até às células). Embora estes grupos sejam normalmente inofensivos e transportadores de oxigénio na hemoglobina, quando são libertados durante a infecção do Plasmodium são tóxicos e causam sintomas graves de malária.
Vejamos como funciona o mecanismo protector. Quando o parasita da malária consegue entrar na corrente sanguínea, invade os glóbulos vermelhos e multiplica-se. Ao rebentar com os glóbulos vermelhos, expulsa a hemoglobina para a corrente sanguínea. Uma vez aí, a hemoglobina liberta os grupos heme. Mas a heme-oxigenase-1 vai agarrar nesses grupos e extrair o ferro, criando assim uma protecção contra a toxicidade desses grupos.
Disfunção renal grave
Até agora, restava a questão: onde é que esta enzima está a actuar? Para encontrar uma resposta, a equipa de Miguel Soares tirou a heme-oxigenase-1 do cérebro, fígado, sistema imunitário ou do sistema circulatório de ratinhos. Contudo, em nenhum destes locais – que seriam previsíveis e são importantes para a protecção contra a malária – se detectou os efeitos da enzima. Acabaram por descobrir que tudo acontecia em células epiteliais do túbulo proximal renal, o primeiro segmento dos túbulos renais nos rins.
Quando os grupos heme estão na corrente sanguínea vão para a urina, mas acabam por ser capturados pelas células epiteliais do túbulo proximal renal. Essas células contêm heme-oxigenase-1, que extrai ferro aos grupos heme e entrega-o à ferritina. Esta proteína guarda o ferro de uma forma que não é tóxica.
“Descobrimos que este é um mecanismo de desintoxicação. Se este mecanismo não existir, qualquer pessoa que tem malária morre”, destaca Miguel Soares. E por que é isso acontece? “Porque se desenvolve uma disfunção renal muito grave, que é um dos parâmetros clínicos principais da malária severa. Não se morre porque o parasita piora ou melhora, mas porque se perde tolerância à doença. Este mecanismo de base não exerce qualquer efeito no parasita, mas é absolutamente crítico para que o indivíduo que esteja infectado com malária possa sobreviver.”
Sobre a importância deste trabalho – que teve Susana Ramos (também do IGC) como primeira autora –, Miguel Soares destaca ainda: “Esta descoberta é a primeira demonstração científica de um processo muito importante contra a malária que age de uma maneira completamente independente do sistema imunitário. Como tal, este mecanismo de protecção natural contra a malária age sem a intervenção de processos clássicos imunológicos que são normalmente estudados no contexto da malária.”
A partir de agora, já é possível pensar em estratégias terapêuticas dirigidas especificamente para este mecanismo. Além disso, esta descoberta cria a possibilidade de tratamento da malária sem os normais problemas de resistência do parasita a medicação antimalárica. “Este tipo de abordagem permite tratar o indivíduo que tem malária sem interferir com o parasita, como tal permite circunscrever o problema de resistência a fármacos desenvolvidos para este parasita”, esclarece Miguel Soares. No futuro, a equipa pretende descobrir outros genes envolvidos neste mecanismo de protecção.