Um Laboratório d'Estórias que (nunca) aconteceram, recontadas pela cerâmica

Neste laboratório não há tubos de ensaio. Há memórias e histórias da cultura popular portuguesa aliadas à tradição de cerâmica das Caldas da Rainha, que resultam em iconografias reinventadas. São animais, plantas ou humanos de faiança, que não se esgotam em si: é também recriada a sua história e personalidade. Porque este é o Laboratório d'Estórias.

À porta da taberna ficava
E até aprendera a falar
Mas do que o corvo Vicente gostava
Era de ver as senhoras passar

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À porta da taberna ficava
E até aprendera a falar
Mas do que o corvo Vicente gostava
Era de ver as senhoras passar

O corvo Vicente, corvo malandro, não foi o primeiro ser que nasceu neste laboratório. Mas é o que mais vezes levanta voo, para aterrar em prateleiras de todo o país (e não só). Tem patas de latão, corpo de faiança e, como tudo o que aqui ganha vida, uma história. Porque este é o Laboratório d’Estórias — um espaço experimental que recria não só as “iconografias portuguesas”, mas também as suas histórias e, “porque não”, a de Portugal. 

São corvos que gostam de bicar as pernas das senhoras, galos que perderam a cabeça, joaninhas que voam, voam. No total, 16 figuras criadas desde que o projecto foi fundado, em 2013, e uma nova prestes a ser lançada ­— o papa-figos. Todas, excepto uma (já lá vamos), têm algo em comum: foram desenhadas por Sérgio Vieira, designer e criador da marca, em conjunto com Rute Rosa.

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Rute Rosa, 42, e Sérgio Vieira, 43, são os fundadores do Laboratório d'Estórias Ana Marques Maia

O Laboratório d'Estórias nasceu da “vontade de ter um projecto próprio” que gerasse o emprego de Rute, depois de 15 anos a trabalhar em fábricas de cerâmica. Alia os saberes da co-fundadora, que também estudou cerâmica na Escola Artística António Arroios, à área de formação de ambos, o design, e conjuga os saberes e a tradição de cerâmica caldense com “desenhos de formas contemporâneas”.

O que chega ao cliente é “o resultado de uma metodologia”: a “valorização de produções” e o fomento de “relações entre gerações”. “Quem produz as peças são pessoas com o saber, que já têm mais idade. Depois procuramos pessoas mais novas para a parte da escrita e da ilustração”, explica Rute. A identidade do corvo Vicente, por exemplo, resultou da escrita de César Sousa e da ilustração de João Cabaço. E, pelo que conta a história, conquistou os taberneiros lisboetas.

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A embalagem identifica todos os envolvidos no processo de produção Ana Marques Maia

As colaborações vão surgindo umas atrás das outras: às vezes é o próprio escritor que sugere um ilustrador com quem quer trabalhar, outras vezes é o casal que as procura. A Varina e o Chá das 5, que é ao mesmo tempo uma peça de decoração e um bule, foi desenhada pelos Storytailors: “Foi a primeira vez que convidamos alguém para desenhar a própria peça. Quando fiz pesquisa sobre as varinas, associei a alguém que contasse histórias através da moda, e essa dupla fê-lo muito bem”, refere Rute. Actualmente, têm estabelecida uma parceria com o Estabelecimento Prisional de Tires. Lá, são costuradas as golas d’A Jarra de Rufos, em burel, que nasceram da inspiração das golas de rufos usadas no século XVI.

O processo produtivo e a filosofia de trabalho

É no atelier ainda em construção, na Rua Hemiciclo João Paulo II, nas Caldas da Rainha, que guardam as peças: as que estão finalizadas e empacotadas, em caixas envoltas por uma cinta de papel onde consta a ilustração, história e o nome de todos os envolvidos na criação do objecto, ou as que ficam pousadas na mesa, à espera que Sérgio lhes dê patas de latão, coladas uma a uma. Mas, antes de lá chegarem, passam por fábricas da região, escolhidas consoante a especificidade de cada ícone.

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Ana Marques Maia

Os papa-figos, por exemplo, são produzidos na Lenacer, uma fábrica pequena, quase familiar, onde é feito o processo de enchimento do molde e cozedura. Depois, passam para as mãos de Teresa Lima, para ganhar cor: antes de mais, há que pintá-los de amarelo, só depois as asas e os pormenores de outra cor. No final, vão ser distintos do que vemos agora: “Há uma diferença de cor muito grande antes de ir ao forno”, explica Teresa enquanto pinta uma asa num tom de cinza que se irá transformar em preto.

Nestas andanças há 40 anos, cruzou-se com Rute e Sérgio por intermédio de uma amiga e pensou que seria “uma colaboração mais curta, que ficaria por ali”. Acabou por envolver-se “de tal maneira” que ficou pelo Laboratório d’Estórias até hoje. Tudo o que é pintado passa pelas suas mãos. 

Além do envolvimento de Teresa, cresceu também o negócio: “Inicialmente pensámos em fazer só uma série de 50 peças. Depois percebemos que não era suficiente. As coisas cresceram naturalmente e hoje já estamos com seis anos e 16 imagens criadas” — e a dar os primeiros passos na internacionalização.

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Ana Marques Maia

“O turismo abre portas a estes pequenos negócios e nós percebemos que os turistas tinham interesse em adquirir as nossas peças para vender em lojas lá fora”, explica a co-fundadora. Decidiram, por isso, participar em feiras internacionais, em França e Itália — com o apoio da Associação Selectiva Moda — e, desde então, têm expandido o negócio para Espanha, França e Holanda. Por cá, as peças podem ser compradas em lojas em Lisboa, Braga, Viana do Castelo e no Porto ou no site.

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Ana Marques Maia

E a família vai continuar a crescer: Setembro e Janeiro são os meses de criar novas imagens e histórias. Depois do papa-figos, pode esperar-se uma nova imagem alusiva às memórias de infância: à joaninha e ao grilo deverá juntar-se o gafanhoto, para “acabar a trilogia dos insectos”.

No futuro, o casal quer ainda introduzir a fotografia e associá-la às outras áreas artísticas já presentes na peça. Terão então mais um nome a acrescentar à cinta que envolve as caixas: “Não queremos só valorizar os processos de produção, mas também uma filosofia de trabalho, onde são respeitadas e identificadas todas as pessoas envolvidas no processo”, remata Rute. E só assim se podem recriar histórias que, cá para nós, provavelmente nunca aconteceram. 

Na série Raiz, o P3 dá a conhecer jovens criadores que dão uma nova vida a empresas familiares ou artes tradicionais.