Drauzio Varella: “O único lugar onde as mulheres têm liberdade sexual é na cadeia”
O oncologista brasileiro veio a Lisboa falar da sua experiência de voluntariado em duas penitenciárias do estado de São Paulo. Na feminina, vê os instintos de sobrevivência de mulheres subverterem as hierarquias, o abandono por parte das famílias e uma clara desatenção com a saúde mental.
Quando Drauzio Varella entrou na Penitenciária Feminina da Capital, no estado brasileiro de São Paulo, há 13 anos, teve que esquecer quase tudo o que aprendera em 17 numa prisão masculina. Viu, em profundo contraste com o que se passa com os homens que conheceu em reclusão, o abandono das mulheres por parte das suas famílias, a violência do afastamento dos filhos, a subversão das hierarquias. E uma liberdade sexual que para o médico era completamente nova. “Estou absolutamente convencido de que o único lugar onde as mulheres têm liberdade sexual é na cadeia. Não tem outro lugar assim.”
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Quando Drauzio Varella entrou na Penitenciária Feminina da Capital, no estado brasileiro de São Paulo, há 13 anos, teve que esquecer quase tudo o que aprendera em 17 numa prisão masculina. Viu, em profundo contraste com o que se passa com os homens que conheceu em reclusão, o abandono das mulheres por parte das suas famílias, a violência do afastamento dos filhos, a subversão das hierarquias. E uma liberdade sexual que para o médico era completamente nova. “Estou absolutamente convencido de que o único lugar onde as mulheres têm liberdade sexual é na cadeia. Não tem outro lugar assim.”
O oncologista e imunologista, escritor e comunicador de ciência, “talvez o médico mais conhecido da América Latina”, como o apresentou o neuropediatra Nuno Lobo Antunes, esteve na sexta-feira no Seminário de Perturbações do Desenvolvimento no Feminino, em Lisboa, organizado pelo PIN – Progresso Infantil.
Falou das experiências na prisão feminina onde dá consultas, voluntárias, uma vez por semana, desde 2006, e sobre as quais escreveu o livro Prisioneiras (2017, Companhia das Letras), que encerra a sua trilogia sobre prisões, depois de Estação Carandiru (1999) e Carcereiros (2012).
Ao todo, a Penitenciária Feminina da Capital tem 2200 reclusas. “Não tendo o homem que toda a vida a oprimiu e lhe impôs regras, na cadeia a mulher pode ter um comportamento sexual completamente livre. Pode ter relação com homem, com mulher, cortar o cabelo, fazer o que ela bem entender. Ninguém critica”, afirma, em conversa com o PÚBLICO.
A porta para a discriminação e violência de género está fechada, acredita, uma vez que a maioria tem comportamentos homossexuais. São independentes da orientação sexual que algumas mulheres assumiam antes do cárcere. “A homossexualidade é muito mais abrangente, também mais subtil do que nas prisões masculinas.” E o que é para si “mais interessante é que as relações são consensuais”. Não há relação violenta, nem abuso, nem crítica.
“Sem amarras machistas, vê-se a mais profunda e complexa expressão da sexualidade feminina.” Diferentes identidades e expressões de género encontram um espaço de respeito. Dinâmicas que Varella demorou a compreender. E, embora desconhecendo a origem, percebeu que a população prisional sentira necessidade de lhes dar nome: “sapatão”, apesar depreciativo em contexto de rua, é “usado com o maior respeito” na prisão, para quem assume uma expressão de género masculina, conta. A maioria identifica-se como homens trans. “São cerca de 10 a 15% da população presa. Têm o cabelo bem curtinho, com as riscas que jogador de futebol brasileiro faz, com um jeito de andar tipicamente masculino, usam um top bem apertado para esconder os seios e não se depilam.” Depois há as entendidas, as mulheres homossexuais de expressão de género feminina. As “'activas’ estabelecem as regras na relação de poder, as ‘passivas’ têm o papel complementar e as ‘relativas’ têm namorada na cadeia e recebem visitas íntimas de um companheiro homem”.
Não é a prisão que cria estas dinâmicas. “A cadeia mobiliza o repertório pessoal. Essas coisas fazem parte da sexualidade feminina”, observa. “Sou formado há cinquenta anos. Vivi rodeado de mulheres. A irmã mais velha foi uma espécie de mãe, tenho duas filhas, uma enteada, quatro netas, e toda a vida acompanhei mulheres com cancro de mama. Na cadeia entendi que eu conhecia nem 10% da variabilidade que a sexualidade feminina pode ter.”
“O amor do homem acaba na porta da cadeia”
No primeiro dia, deu com uma diferença clara entre a cadeia masculina e a feminina. Conheceu a reclusa que liderava o pavilhão e lhe falou da exaustão que sentia por não conseguir apartar tantos desentendimentos. “Numa cadeia de homens jamais aconteceria. Os homens são muito ciosos da hierarquia. As mulheres, por uma necessidade de sobrevivência que vem da infância, estão acostumadas a subvertê-la.”
É a sua experiência anterior no Carandiru que lhe permite ter termo de comparação. Entrou em 1989 para estudar a prevalência e os primeiros casos de VIH na população reclusa e só saiu com o encerramento do presídio em 2002. A oficialmente designada Casa de Detenção de São Paulo, chegou a ser a maior penitenciária da América Latina, cicatrizada pelo massacre de 111 reclusos em 1992 após intervenção da Polícia Militar, na sequência de um motim. Em reacção, nasceu a rede de crime organizado do PCC - Primeiro Comando da Capital, que controla os presídios de São Paulo. O médico habituara-se a uma obediência cega ao seu sistema de leis paralelo ao direito civil, que ninguém escreveu mas todos respeitam. O líder aparece na galeria e a briga termina. Não há zonas cinzentas entre o certo e o errado. Os crimes são julgados, os mais graves punidos com a pena de morte. Só punição severa, argumenta Varella, frena instintos violentos, contém a barbárie no país que tem a terceira maior população encarcerada do mundo e um problema de sobrelotação crónico. Não há argumento para desafiar a ordem interna.
Entre as mulheres, instintos de aversão à submissão dão às relações hierárquicas uma complexidade incomparável. A emoção vale tanto como a razão.
Abandono e transtornos psiquiátricos
O contacto com reclusos, ao longo de 30 anos, colocou Drauzio Varella a olhar para a inevitabilidade de alguns percursos de vida. Especialmente entre as mulheres negras, da periferia, presas por tráfico de droga. “São as mulheres que sofrem a maior violência da sociedade. Ainda meninas têm que se virar sozinhas do jeito que der. Têm o primeiro filho aos 14 anos, deixam de estudar, aos 19 já vem o terceiro. Como as tias, as mães, vão criar os filhos sozinhas. Na periferia não há homem nas casas. O que faz uma mulher destas? Como sustenta os filhos? É lógico que vendendo droga. É o mais fácil, está ali perto de casa. Claro que depois há um dinheiro e quer comprar um sapato melhor, umas calças de marca, como todos nós.”
Esse papel nuclear na família desfaz-se quando a mulher é presa. As diferenças nas relações familiares em comparação com os homens foram as mais traumáticas que o médico encontrou. Viu mulheres formarem impressionantes filas à porta da prisão masculina nos domingos de visita. Algumas a armar pequenas barradas e chegar de véspera para passarem mais tempo com filhos, netos, namorados, maridos. “Conheci homens que estiveram uma vida presos - 30 anos é a pena máxima - e todos os domingos receberam visitas. Já a mulher que cumpre pena, é abandonada. Ninguém vai ver. O amor do homem acaba na porta da cadeia.” Das 2200 mulheres da Penitenciária Feminina da Capital, menos de 800 são visitadas. Cerca de 80 recebem visitas íntimas.
Varella conta no livro a história de uma mãe que viajava várias horas para ver o filho numa cadeia no interior do Estado e não apanhava o metro para visitar filha encarcerada na prisão central de São Paulo. “A sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira”, escreveu.
Deixar os filhos é, também por isso, um martírio para muitas mães. Temem que as crianças sofram às mãos de familiares, que encarreirem o mesmo caminho do crime. “O homem quando está preso sabe que tem uma mulher cuidando dos filhos. A mulher acha que ninguém vai cuidar dos filhos como ela seria capaz.” Quando nascem na prisão ou antes da condenação, os bebés ficam com elas até por volta dos seis meses - tempo mínimo por lei, que tem sido aplicado como máximo. “Muitas mães chegam à consulta e pedem hormona para parar de lactar, porque é um sofrimento muito violento.”
Esta fonte de ansiedade e tristeza é muitas vezes o gatilho que dispara um transtorno psiquiátrico, como a depressão, ou os ataques de pânico. Ambos são mais frequentes entre as mulheres presas mas “não lhes é dada atenção nenhuma”, diz Drauzio Varella.
“De vez em quando uma menina se suicida na cadeira, a população se mexe mas esquece rapidamente. Provavelmente existem ali pessoas com perturbações do desenvolvimento [como as patologias do espectro do autismo] muito graves que passam despercebidos na massa carcerária, porque o atendimento médico é muito precário.” A prisão da Capital tem um psiquiatra para 2200 mulheres. Os cuidados médicos circunscrevem-se, em geral, aos ferimentos e patologias visíveis, imediatas e essencialmente físicas. “Os médicos não gostam de trabalhar em cadeia. No Carandiru, nos dias em que eu ia, os colegas faltavam.”