Estão os concursos da SIC e da TVI a reproduzir estereótipos femininos?
Quem Quer Casar com o Meu Filho? e Quem Quer Namorar com o Agricultor? são os novos programas dos canais generalistas que levantaram polémica e fizeram entrar queixas na ERC.
De um lado há uma mãe e um filho sentados num sofá, a fazer perguntas à possível candidata a casar-se com o rapaz. Perguntam-lhes se sabe cozinhar, se já foi casada, se tem filhos, se fuma. Do outro há um conjunto de homens que em comum têm a profissão de agricultor, que procuram mulheres com quem iniciar uma relação. Cada um escolhe quatro mulheres. São assim os novos concursos da TVI – Quem Quer Casar com o Meu Filho? – e da SIC – Quem Quer Namorar com o Agricultor?, que se estrearam neste domingo e que puseram as redes sociais a discutir, mas não só. Já chegaram queixas à Entidade Reguladora para Comunicação Social (ERC).
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De um lado há uma mãe e um filho sentados num sofá, a fazer perguntas à possível candidata a casar-se com o rapaz. Perguntam-lhes se sabe cozinhar, se já foi casada, se tem filhos, se fuma. Do outro há um conjunto de homens que em comum têm a profissão de agricultor, que procuram mulheres com quem iniciar uma relação. Cada um escolhe quatro mulheres. São assim os novos concursos da TVI – Quem Quer Casar com o Meu Filho? – e da SIC – Quem Quer Namorar com o Agricultor?, que se estrearam neste domingo e que puseram as redes sociais a discutir, mas não só. Já chegaram queixas à Entidade Reguladora para Comunicação Social (ERC).
Para a associação feminista Capazes, “estes programas são graves para as mulheres no reforço de estereótipos extremamente prejudiciais”. A organização considera que “os homens estão na superior posição de escolher [as mulheres] com critérios de absurdo machismo e sexismo”, declara a associação por escrito ao PÚBLICO, acrescentado que está a “ponderar queixas à ERC e à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género”.
Nestes programas, “as mulheres são tratadas como gado que fala”, define Eduardo Cintra Torres, professor universitário e crítico televisivo, desvalorizando-os. “Tudo aquilo é uma encenação, mas, mesmo sendo encenação, a imagem que passa é a das mulheres expostas para o agricultor escolher [na SIC] e a da mulher que sabe cozinhar [do concurso da TVI].”
Questionada sobre se esta reprodução de estereótipos é um problema do formato, dos canais ou mera amplificação de algo que está enraizado na sociedade, Felisbela Lopes, investigadora da área dos media na Universidade do Minho, confirma: “É sobretudo um problema da sociedade ao qual é dada maior visibilidade quando é assim colocado em horários de grande audiência. Não podemos fazer desaparecer da televisão esses tiques comportamentais, eles existem no tecido social. Somos uma sociedade dominada pelos homens em que há papéis estereotipados atribuídos às mulheres. Actualmente temos um modelo de televisão-espelho e ela reflecte o que está na sociedade.”
Por exemplo, a imagem transmitida pelo programa da TVI começou na rua, com os cartazes a mostrar um filho adulto no sofá e uma mãe cansada, em pé, a aspirar. “Estes formatos são emitidos em canais generalistas dirigidos ao grande público, e nele uma franja muito grande de um público mais popular, e é evidente que estas estratégias de marketing também têm isso em conta. Não são as mais felizes, estão a exacerbar traços que a sociedade deve combater”, lamenta Felisbela Lopes.
A televisão “não precisa” de objectificar as mulheres para vender, defende Eduardo Cintra Torres. “Hoje em dia também já objectifica o homem. Os próprios candidatos também estão a ser objectificados. Tudo o que passa na televisão acaba por ser objectificado, seja homem, mulher ou animal”, acrescenta. A Capazes concorda que estes programas “também são graves para os homens, pois retratam-nos como acéfalos, incapazes de cumprir tarefas domésticas, dependentes, submissos às mães, amorfos, apenas interessados em escolher uma pessoa com base no tamanho do rabo e nos dotes para a cozinha”. “Acreditamos que muitos homens se tenham sentido profundamente incomodados com este quadro de decadência e que não se revejam minimamente”, defende a associação.
Guerra de audiências
O papel dos canais pode ser de recalibração ou maior enquadramento do que apresentam, defende Felisbela Lopes. “O problema é que a televisão isola e dá uma enorme visibilidade a esses casos, exacerba-os. Isso deveria suscitar um cuidado acrescido por parte das televisões, no sentido de os reequilibrar — se houver dois exemplos em quatro, já é muitíssimo para eles se tornarem muito visíveis.”
Esta estreia simultânea, que a investigadora integra numa “estratégia de clonagem”, é uma tendência que não é nova, que mostra uma certa reorientação da SIC para uma abordagem mais popular e que surge num momento especial da concorrência entre SIC e TVI — pela primeira vez em 12 anos, a estação de Carnaxide ultrapassou a congénere de Queluz nas audiências mensais, com a TVI a ser líder de audiências incontestada há mais de uma década “Na história de televisão pós-privadas, há um canal generalista que vai à frente e os outros tentam clonar a [sua] grelha de programação”, diz a especialista.
Em matéria de audiências, o programa da SIC foi o mais visto do dia, registando uma média de 1.434.600 espectadores. Ainda assim, a TVI ganhou o dia, registando 18,2% de share de audiência, ainda que apenas 1.113.660 espectadores tenham assistido à estreia de Quem Quer Casar com o Meu Filho? – o quarto programa mais visto em toda a programação diária. Em ambos os casos, foram as mulheres quem mais assistiu. Quem Quer Casar com o Meu Filho? é um formato argentino e Quem Quer Namorar com o Agricultor? um original britânico - e tal como no programa de origem, a SIC deixa em aberto, num comunicado sobre as audiências da sua estreia, a possibilidade da troca de papéis de género ao explicar como nele “um conjunto de candidato(a)s decide com que agricultor(a) solteiro(a) quer abraçar a experiência de uma vida no campo”.
Sendo “precoce” coroar já a SIC como líder depois de mais de uma década de domínio da TVI, Felisbela Lopes sugere que estes programas, a que se podem juntar outros reality shows com base nos afectos e experiências sociais como Casados à Primeira Vista (SIC), First Dates, o Primeiro Encontro (TVI) ou Carro do Amor (SIC) nos últimos meses, mostram que “está em causa um novo patamar da programação televisiva, uma outra era. Desde meados do primeiro trimestre de 2019, a SIC reconquista a liderança e começa a mandar em toda a programação”. Em pouco tempo, defende, “cada um dos canais já interiorizou isso ao nível das engenharias da programação — os programas da manhã da TVI já estão a ir atrás do formato [do Programa] da Cristina”, a contratação-chave da SIC da direcção de programas de Daniel Oliveira.
Até à hora de publicação desta notícia, o PÚBLICO tentou contactar a SIC e a TVI, que não se mostraram disponíveis para quaisquer esclarecimentos sobre os programas cujos formatos foram importados de outros países. No entanto, Leonor Poeiras, apresentadora do concurso da TVI e cronista no site da Capazes, veio defendê-lo na sua conta de Instagram: “(...) E finalmente, a todos os que viram e se chocaram por me associar a este formato (precisamente porque todos sabem que sou feminista)... Alguma vez eu aceitaria apresentar um programa que trata a mulher como um objecto?”
Notícia actualizada às 7h19 de 12 de Março: cita-se comunicado da SIC
Texto editado por Bárbara Wong