O multiculturalismo é mau para as mulheres?
A igualdade de género para todas as mulheres, suplantando o estrato social, grupo cultural ou religião, tem uma longa batalha pela frente de resultado incerto.
1. A questão não é nova. No final dos anos 1990 a feminista Susan Moller Okin mostrava receio de que os avanços do multiculturalismo — no sentido de políticas multiculturais —, com a inerente protecção jurídica da diversidade cultural, pudessem levar a um retrocesso na igualdade de género. Num livro e discussão teórica sobre o assunto, formulava assim a questão: “Embora tenha passado despercebida no debate actual, uma questão é recorrente em todos os contextos: o que fazer quando as exigências das culturas ou religiões minoritárias chocam com a norma da igualdade de género que, pelo menos formalmente, é endossada pelos Estados liberais?”
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1. A questão não é nova. No final dos anos 1990 a feminista Susan Moller Okin mostrava receio de que os avanços do multiculturalismo — no sentido de políticas multiculturais —, com a inerente protecção jurídica da diversidade cultural, pudessem levar a um retrocesso na igualdade de género. Num livro e discussão teórica sobre o assunto, formulava assim a questão: “Embora tenha passado despercebida no debate actual, uma questão é recorrente em todos os contextos: o que fazer quando as exigências das culturas ou religiões minoritárias chocam com a norma da igualdade de género que, pelo menos formalmente, é endossada pelos Estados liberais?”
O problema, como esta evidenciou, encontra-se na natureza discriminatória dos papéis de género, ou seja, da mulher, em muitas culturas tradicionais vistas como minoritárias (no Ocidente). Argumentava Susan Moller Okin que o facto de se tratar de um grupo ou cultura diferente não deveria ser motivo para fazer retroceder o movimento pelos direitos das mulheres. (Ver Susan Moller Okin et al. “Is Multiculturalism Bad For Women?”, Princeton University Press,1999).
2. A crescente diversificação cultural das sociedades onde vivemos, pela via dos fluxos migratórios ligados à globalização, trouxe novas realidades e problemas ao Direito, ainda hoje mal percebidos. Urge, assim, tentar identificá-los e analisá-los nas suas diferentes implicações. Uma das mais importantes ocorre no plano dos valores morais. A relação das normas jurídicas com os valores morais sempre foi um assunto complexo, objecto de várias teses explicativas.
Em termos esquemáticos, pode-se afirmar que o Direito interage com a moral em dois planos: (i) na criação das normas jurídicas que protegem os valores morais mais profundos de uma sociedade, criminalizando as condutas atentatórias mais graves; (i) na aplicação das normas jurídicas pelos tribunais aos casos concretos, as quais passam, necessariamente, pela intermediação dos juízes (e pela sua visão do mundo) e interagem com os valores e sentimentos de justiça da sociedade.
Mas para além da diversidade cultural ligada à globalização — a qual trouxe consigo novos grupos com diferentes sistemas morais e concepções de justiça —, existe uma segunda e mais familiar faceta do problema. No último meio século, em especial desde os anos 1960, ocorreram enormes transformações de valores no Ocidente. Todavia estas não significam que, numa determinada sociedade, todos estejam a par de tais transformações, ou se tenham convertido aos novos valores. Pelo contrário, subsistem importantes fracturas segundo linhas urbanas/rurais e geracionais.
3. Na sociedade portuguesa, o conflito de valores morais mais intenso ocorre dentro do mesmo grupo cultural, não em relação a outros grupos culturais minoritários. A sociedade portuguesa mantém-se bastante homogénea, pelo menos quando comparada, por exemplo, com a França, a Holanda, o Reino Unido ou a Alemanha. Para efeitos analíticos, esse conflito de valores ocorre ao longo de uma linha que podemos designar por progressismo (ou liberalismo social) versus conservadorismo (ou tradicionalismo).
No centro do debate e controvérsia tem estado a questão da igualdade de género nas suas várias ramificações, em particular o caso da violência doméstica contra as mulheres. A aplicação do Direito aos casos concretos, mais especificamente uma decisão judicial do Tribunal da Relação do Porto de 11/10/2017, levantou uma vaga de críticas na sociedade. Importa notar que no cerne da questão não está o Direito strictu sensu, não se tratou de um erro técnico-jurídico.
No centro da controvérsia está a fundamentação moral usada para fundamentar a decisão jurídica. A parte mais contestada foi a seguinte: “Este caso está longe de ter a gravidade com que, geralmente, se apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência doméstica. Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse. Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.” (Ver Processo n.° 355/15.2 GAFLG.P1, Tribunal da Relação do Porto).
4. A chuva de críticas feitas publicamente — por vezes resvalando para o insulto — mostra como o argumento do referido acórdão de que a sociedade “vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, não está em sintonia com as actuais concepções morais da sociedade. Pelo menos, das concepções e sentido de justiça de partes substanciais da sociedade que se afastaram das concepções morais referidas no mesmo.
Mas poderá a referência à “compreensão da sociedade por esse comportamento violento do homem traído” ser justificada face aos valores morais do grupo e/ou estrato social do homem e mulher envolvidos no caso? Por outras palavras, a ser assim, será aceitável que um tribunal aplique diferentes critérios de valoração de um comportamento humano e de justiça consoante o grupo social, cultural ou religioso das pessoas envolvidas, numa lógica de relativismo moral?
Vejamos outro caso, agora ocorrido na Alemanha em 2007, julgado por um tribunal de Frankfurt, o qual gerou enorme controvérsia na sociedade alemã. Aí a aplicação da lei a um caso concreto cruzou-se com a questão da diversidade cultural e religiosa. (Ver “German Judge Cites Koran in Divorce Case” in Spiegel online international, 21/03/2007). Uma mulher alemã, de ascendência marroquina, viu negado a possibilidade de obter o divórcio rápido que pretendia, dado ser vítima de agressões corporais e de ameaças de morte. Neste caso, a fundamentação usada pelo tribunal para a sua decisão — de não conceder o divórcio rápido — foi a de que violência doméstica seria tolerável de acordo com os preceitos do Alcorão.
O argumento ressoa à invocação do Antigo Testamento feita no referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Para a juíza do processo, o facto de a mulher e o marido serem de um ambiente cultural marroquino — ou seja, de tradições culturais patriarcais islâmicas — era um factor de atenuação da gravidade do comportamento do homem. No contexto da sua cultura, era “normal” exercer um direito de punição corporal da sua esposa. (Ver “German judge invokes Qur'an to deny abused wife a divorce” in Guardian, 23/03/2007). Absurdo, numa lógica de Direitos Humanos universais e de afirmar uma igualdade perante a lei que abstrai do grupo ou cultura. (Ver ainda, “Paving the Way for a Muslim Parallel Society” in Spiegel online international, 29/03/2007).
5. No mundo ocidental é hoje observável uma tendência para a criação de regras jurídicas — e de regimes legais de excepção — à medida dos valores culturais ou religiosos de certos grupos. Pelas razões já apontadas (a manutenção de uma grande homogeneidade cultural), não é ainda visível no Direito português.
Em termos comparativos, um exemplo curioso é a isenção dos Sikh de usarem capacete na condução de veículos motorizados de duas rodas, devido ao seu uso do turbante. No Reino Unido, onde há uma tradição de políticas multiculturais desde finais dos anos 1960, uma lei de excepção existe desde 1976, aparentemente sem provocar grande polémica. (Ver a nota explicativa no final do “Motor-Cycle Crash Helmets / Religious Exemption Act de 1976). Recentemente, no Canadá, onde há um ainda maior enraizamento das políticas multiculturais, o Estado de Alberta adoptou também similar legislação. (Ver “Helmet exemption Sikhs who wear a turban can ride a motorcycle or off-highway vehicle without using a helmet”).
Mas será este um bom modelo de legislação a seguir por outros Estados? É mais justa uma legislação que dá direitos específicos a certos grupos e culturais minoritários — ou os isenta de determinadas obrigações legais —, legislação essa diferente da aplicável ao resto da sociedade? Não estará assim a quebrar-se um princípio enraizado no Direito ocidental de que lei deve ser geral, abstracta? E se os direitos dos grupos funcionarem, na prática, ainda que a intenção do legislador seja outra, como cobertura legal e forma de legitimação social da desigualdade de género?
6. Voltemos ao caso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Como já notado, o Direito não actua num vazio cultural e de valores. Num passado, que perdurou até às últimas décadas do século XX, os valores morais em questões de género não eram maioritariamente entendidos como são hoje. Isso explica, por exemplo, a longevidade do Código Penal de 1886 citado nesse acórdão. Esteve em vigor — embora com alterações e revisões mais ou menos profundas — durante quase um século. Só foi integralmente substituído em 1982 pelo actual Código Penal.
O teor original do artigo 372.º é hoje visto como desadequado — até chocante — face às concepções morais e sentimento de justiça da sociedade. Repare-se na maneira como era tipificado o crime de adultério: “O homem casado que achar sua mulher em adultério, cuja acusação lhe não seja vedada, nos termos do artigo 404,º § 2.º e nesse acto matar ou a ela ou ao adúltero, ou a ambos, ou lhes fizer algumas das ofensas corporais declaradas nos Arts. 360.º, n.ºs 3.º a 5.º, 361º e 366.º, será desterrado para fora da comarca por seis meses. § 1.º Se as ofensas forem menores não sofrerá pena alguma. § 2.º As mesmas disposições se aplicarão à mulher casada, que no acto declarado neste artigo matar a concubina teúda e manteúda pelo marido na casa conjugal, ou ao marido ou a ambos, ou lhes fizer as referidas ofensas corporais.”
Todavia, sob o prisma da crença no progresso humano, incluindo no progresso moral e social — enraizada nas sociedades ocidentais — reflecte um passado, hoje intolerável, de opressão da mulher. Nessa óptica, é fácil repudiar a argumentação do acórdão até porque não incorre na crítica de intolerância para com o outro e de superioridade civilizacional ocidental face a outras culturas.
7. A questão entra num terreno bem mais delicado quando toca pessoas oriundas de culturas não ocidentais, sendo as culturas desses grupos vistas hoje como minorias a proteger. Nessas culturas não há, tipicamente, uma crença/ideia de progresso enraizada similar à ocidental. Os valores morais — e o Direito que deve proteger a sociedade quanto às suas violações — continuam a ser vistos como de origem divina e imutáveis, não devendo ser sujeitos a interpretações desviantes (leia-se, liberais).
É esse o problema, que levanta, por exemplo, a aplicação da Sharia, a lei islâmica no presente. (Ver, por exemplo, “Can you provide me with some details concerning the punishment for committing adultery? Is it necessary to have a punishment for the sin to be forgiven?” In IslamQA, [Mufti] Muhammad ibn Adam Darul Iftaa Leicester, UK, https://islamqa.org/hanafi/daruliftaa/7741).
Mas esse tradicionalismo não ocidental existe agora — e está até em crescimento por razões migratórias e demográficas — no interior das sociedades ocidentais. Assim, a grande colisão não é com a moralidade tradicional cristã do passado, como se poderia supor. Existem pontos de contacto na concepção de família e do papel da mulher devido a uma base religiosa em parte comum, ainda que interpretada de forma diferente. Apesar dos teóricos do multiculturalismo verem (apenas) minorias culturais a proteger — e uma luta similar à da igualdade de género —, os valores tradicionalistas dessas minorias são uma realidade incontornável. Resulta daí um potencial de atrito com a cultura secular e liberal-social ocidental.
É necessário reconhecer que a preocupação de Susan Moller Okin, expressa há vinte anos, tem hoje ainda maior significado. A luta pela igualdade de género fez notáveis progressos, só que quase sempre dentro da cultura ocidental e seus prolongamentos. Mas o problema tem duas frentes. Uma é a das concepções morais tradicionais que subsistem na cultura ocidental. A outra, muito mais difícil, está no multiculturalismo e no relativismo moral e jurídico que implica. Paradoxalmente, o homem tradicionalista não-ocidental, tipicamente o representante dos grupos minoritários em expansão pela demografia, tem sido o grande beneficiário das políticas multiculturais ocidentais. Importa ainda não perder de vista que o Ocidente e os seus valores liberais estão em retrocesso no mundo. A igualdade de género para todas as mulheres, suplantando o estrato social, grupo cultural ou religião, tem uma longa batalha pela frente de resultado incerto.