O inglês está a deixar de ser a língua padrão da música global
Em 2018, oito das dez canções mais ouvidas no YouTube eram cantadas em espanhol. E a maior boy band canta em coreano e esgota salas no mundo inteiro. Uma nova realidade, assente no streaming e nas transformações de um mundo em rede (social).
É a língua franca mundial, falada fluentemente ou de forma utilitária por um quarto da população do planeta. É a língua que contamina todas as outras, introduzindo os seus vocábulos no discurso corrente e impondo os seus termos técnicos como factor distintivo de uma ideia de sofisticação e cosmopolitismo – veja-se como o mundo empresarial prefere budgets, targets e afins às palavras que o português tem disponíveis para dizer o mesmo.
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O inglês é dominante mundo fora como nenhuma outra língua. Na música, nada disto é novidade. Desde há pelo menos seis décadas, ou seja, desde o advento do rock’n’roll e, principalmente, após o furacão Beatles, que o mundo anglo-saxónico é o centro do universo musical. Algo, porém, parece estar a mudar.
Despacito, o sucesso planetário de Daddy Yankee e Luis Fonsi, editado em 2017, foi o primeiro sinal. No ano seguinte, Ozuna, a estrela porto-riquenha do reggaeton, foi o músico que acumulou o maior número de streams no YouTube. Mais: oito das dez canções mais ouvidas na plataforma eram cantadas em espanhol. Em segundo lugar surgia J Balvin, colombiano cuja música se finca no reggaeton e que já faz caminho por terrenos que, noutra era, lhe seriam interditos, surgindo como um dos cabeças de cartaz da edição deste ano do Primavera Sound de Barcelona e do Porto, fundado como bastião da cultura independente com centro no rock.
Entretanto, a catalã Rosalía, que também estará nos dois Primavera Sound, cruza flamenco com hip hop e R&B, e há quem creia que pode tornar-se uma figura da dimensão de Beyoncé. Enquanto isso, os BTS, boy band coreana, escalam ao topo da tabela de vendas da Billboard e esgotam pavilhões em Inglaterra, Estados Unidos ou França, transformando a K-Pop, cantada em coreano, num fenómeno global. Estará a era de dominação global incontestada do eixo anglo-saxónico a chegar ao fim?
No final de 2018, Jon Caramanica, crítico de música do New York Times, defendia que o ano tinha sido marcado pela ascensão de uma nova era de estrelas pop, assentes no streaming e nas redes sociais e definidos por elas, pelas bases da cultura hip hop e por uma nova forma de agir, nos antípodas das estrelas globais anteriores, como Madonna e Michael Jackson, ou mesmo de celebridades mais recentes como Katy Perry, Justin Timberlake ou Lady Gaga – os grandes acontecimentos editoriais, a aura de inalcançáveis e o glamour clássico a serem substituídos pela produção constante, uma identidade musical mutante e a transmissão de uma ideia de proximidade.
Já este ano, Caramanica voltou ao tema no seu podcast, assinalando que a nova era é também marcada por uma descentralização em que o inglês deixou de ser a língua padrão. No centro do império musical anglo-saxónico, os Estados Unidos, isso é hoje uma evidência. “No país mais forte da anglofonia, a anglofonia nem sequer é absolutamente dominante”, assinala David Ferreira. “Neste momento, há um factor muito importante, que é o peso da comunidade hispânica nos Estados Unidos”, diz o editor durante três décadas na Valentim de Carvalho e na EMI e voz que podemos ouvir actualmente na Antena 1 em A Contar e A Cena do Ódio. Quer isto dizer, portanto, que o mundo musical se diversifica e que o inglês deixa de ser a língua padrão, sendo que é precisamente dos Estados Unidos que emana a mudança. Sim e não.
José Barreiro, director do Nos Primavera Sound, comenta que se sente como “um programador de arte contemporânea” — por oposição ao de um museu de arte antiga. Abordávamos as críticas surgidas após o anúncio da programação do festival que terá lugar no Parque da Cidade do Porto entre 6 e 8 de Junho, motivadas pela presença e destaque em cartaz de J Balvin ou Rosalía. Para Barreiro, tais escolhas decorrem da própria natureza do festival. “Também teremos a Solange, a Erykah Badu e muitos nomes da cultura urbana actual. E estamos muitos orgulhosos por trazer os Guided By Voices [lendas do rock independente americano]. Somos um festival que aposta na actualidade e cuja programação deve transmitir aquilo que se passa no mundo da música”, afirma. “Muitos dizem que estamos a mudar, mas se calhar não somos nós que estamos a mudar. O Frank Sinatra sempre odiou os Rolling Stones e não eram os Rolling Stones que estavam errados”, provoca.
Frank Sinatra, representante da grande canção americana saída da era do swing, daria lugar à British Invasion dos anos 1960 que moldou em grande parte o universo pop no mundo ocidental (e além dele) nas décadas seguintes. Estados Unidos e Inglaterra. Inglaterra e Estados Unidos. Sempre eles, de forma quase esmagadora. Sempre o inglês como presença constante, convivendo ou sobrepondo-se às produções locais cantadas na língua de cada país. Sempre, até este presente de uma realidade em mudança.
Uma simulação de vida brutal
Pedro Azevedo, programador do Musicbox, em Lisboa, o homem que encarna La Flama Blanca, alter-ego latino que é o anfitrião desde há sete anos do Baile Tropicante na sala no Cais do Sodré – e outras salas país fora —, animadas a cumbia, reggaeton e outras sonoridades suas familiares, não tem dúvidas: “É absolutamente normal que esteja a acontecer agora. Só é ridículo como não aconteceu antes”. Branko, um dos fundadores dos Buraka Som Sistema, agente activo na definição de novos eixos na música popular urbana (tudo explicado, novamente, no seu segundo álbum a solo, Nosso, editado a 1 de Março), afirma que “apesar de pressentir que as coisas se iriam alterar, era difícil acreditar nisso, porque são muitos anos de domínio, principalmente quando parte determinante da indústria está no eixo Los Angeles, Nova Iorque, Miami”. Porém, algo mudou mesmo. “O que acabou por acontecer é que o processo se democratizou com o streaming, por exemplo, e os centros de decisão mudaram. Se as maiores cidades do mundo são a Cidade do México e São Paulo, então esses passam também a ser os centros”, diz Branko. “Passámos para um campeonato que tem a ver com números e os números obrigaram os A&R a olhar para onde não costumavam olhar”, defende. “O centro de decisão passou para os computadores”, ou melhor, para as pessoas por trás dos computadores, que são tanto o público anónimo que, seguindo, ouvindo, partilhando as canções e publicações nas redes sociais, cria o protagonismo de Drake, Ozuna, J Balvin, Rosalía ou BTS, quanto os artistas que se movem com habilidade neste decisivo espaço mediático.
“Gosto imenso da música do Bad Bunny, mas percebe-se que o foco dele não é lançar discos”, diz Pedro Azevedo. “O maior interesse é lançar um conteúdo que seja apelativo visualmente e acusticamente para a nova geração”. Bad Bunny é o músico nascido em Porto Rico, revelado através do Soundcloud e cujo crescimento fulgurante, dos confins da internet para cenário global, o transformou numa das figuras de maior protagonismo da actualidade – foi o terceiro com maior número de visualizações no YouTube em 2018 e é músico maleável, indo da rudeza do trap a colaborações com Drake, Jennifer Lopez, Cardi B ou, naturalmente, J Balvin ou Ozuna. Pedro Azevedo descreve-o como “um criador de lifestyle”: “Tiveste o rock’n’roll muitos e muitos anos, mas acabou-se a brilhantina e o casaco de cabedal e há um novo estilo de vida que se projecta”. Ele sabe-o bem. Ainda recentemente viu como o Musicbox esgotou para ver C. Tangana, rapper madrileno que, noutro tempo, estaria circunscrito ao seu país, mas que hoje avança sobre toda a Europa e Estados Unidos.
Por trás de todas estas mudanças está o género que, no ano passado, ultrapassou oficialmente o rock e seus derivados como a música mais ouvida no maior mercado musical mundial, os Estados Unidos. Falamos, claro, do hip hop. “O domínio global do hip hop e a sua responsabilidade em tudo isto até vai buscar uma raiz ao punk, que é a ideia do do it yourself”, aponta Branko. “É esse elemento que o torna tão flexível. Os artistas são completamente maleáveis e reinventam-se constantemente. O Drake tem uma equipa por trás, mas é só ele e é dele a última palavra. Com um MPC e um microfone, não precisa de mais nada”. Tudo o que era adquirido anteriormente como necessário para construir uma carreira ou, no mínimo, um sucesso – a necessidade de uma editora empenhada, a máquina promocional, os destaques na imprensa –, não o é actualmente. “É global e é uma realidade sem qualquer tipo de filtro”, aponta Pedro Azevedo. “Uma simulação de vida brutal [através das redes sociais]. Não há qualquer necessidade de falar com jornalistas, não há necessidade de entrevistas, de críticas. Há necessidade de um vídeo para as pessoas verem”. Como diz Branko, “a afirmação da identidade é muito importante nisto tudo, numa luta que já vem desde a M.I.A., uma artista para quem trazer consigo uma história e uma cultura era determinante”.
Olhando para os dados dos topes divulgados pela Associação Fonográfica Portuguesa relativos a 2018, estas alterações são visíveis. O top das edições físicas, que reflectirá os velhos hábitos de consumo musical e que representa uma fatia de mercado decrescente, não encontra paralelo no top de streaming, hoje o formato preferencial para o consumo de música e adoptado de forma esmagadora pela geração millenial. Nos 40 primeiros de cada um deles, apenas um nome partilhado, Shawn Mendes – e a compilação Reggaeton Mix 3, que abre com Mi gente, de J Balvin, a surgir como 21.º álbum mais vendido do ano em Portugal. No top de edições físicas, não estão nenhum dos nomes referidos até aqui. Já no de streaming, ei-los em sucessão: Drake, J Balvin, Cardi B, Bad Bunny. Não só eles, mas também músicos portugueses enquadrados no mesmo perfil, como Blaya, DJ Dadda com Plutónio, Piruka ou os Wet Bed Gang.
A presença crescente do espanhol no universo musical global está claramente associada a uma questão cultural americana e, nesse sentido, mostra como o país continua a ser o grande pólo difusor da música consumida no planeta. “Existe um presidente [Trump] que, pela agressão, obriga a comunidade latina, que é gigante, a manifestar-se”, aponta Pedro Azevedo. Além disso, como afirma Branko, “quando o foco [musical] passou para o mundo latino, os seus agentes estavam preparados”. Têm os números, claro, mas também tinham “managers, escritórios e editoras” atentas e alerta perante os novos públicos e os novos modos de funcionamento da indústria. Em entrevista recente ao Ípsilon, Branko dizia acreditar na possibilidade futura de uma cena em português, impulsionada pelo Brasil e pelo restante universo lusófono, com dimensão equiparável. “Temos hoje exemplos soltos, com o baile funk, com uma Anitta, e talvez daqui a 15 anos consigamos ter uma cena portuguesa como hoje existe a espanhola”, repete agora ao PÚBLICO.
David Ferreira conta um episódio curioso. Em 1962, uma comitiva de músicos brasileiros, onde se encontravam João Gilberto e Luiz Bonfá, apresentou-se no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Em antecipação do espectáculo, a imprensa prenunciou que a bossa nova seria, “com grande probabilidade”, a vaga que sucederia ao rock’n’roll. O concerto nunca cumpriu tamanhas promessas, mas o ponto, acentua David Ferreira, é que a previsão, ainda que falhada, “não parecia na altura exótica ou impossível”.
De facto, apesar de o peso do inglês ser já então significativo, estava longe de esmagador. “O francês era a língua estrangeira dominante em Portugal, e presumo que noutros países”, recorda, enquanto conta que “em 1963, ao apanhar os Beatles”, se deparou “com um obstáculo extra, que era o da língua”. E, convivendo com o francês dos Chats Sauvages e Richard Anthony ou com o português adocicado da bossa, havia, por exemplo, o italiano de Domenico Modugno.
Agora, quando no coração da anglofonia o inglês já não é dominante, quando a boy band mais famosa do planeta canta em coreano, quando dita leis uma nova realidade, assente nos números crus de streams, visualizações e partilhas, e potenciada pela exposição sem mediação das redes sociais, algo parece estar a mudar. Hoje, a ascensão do espanhol do reggaeton e do coreano do K-pop. E amanhã? “Parece-me que cada vez mais esta realidade será como no futebol brasileiro”, compara Pedro Azevedo. “O Palmeiras ganha num ano, depois o Botafogo e depois uma equipa qualquer acabada de chegar da segunda divisão.” Num mundo dinâmico, em transformação galopante, esperemos o inesperado.
Corrigido às 13h25: J Balvin é colombiano, não porto-riquenho como escrito inicialmente.