Um Presidente-sempre-presente
Toda a transformação que Marcelo fez no institucional exercício do poder de magistratura de influência, tornando-a mais interventiva, foi possível pela sua capacidade de usar e alargar – até de forma obsessiva – a sua popularidade
Em três anos, Marcelo Rebelo de Sousa transformou e modernizou o perfil de exercício do mandato de Presidente da República. É normal que quem ocupa o primeiro lugar na hierarquia do Estado o personalize; afinal, é o único órgão de soberania unipessoal. Mas Marcelo fez mais: empurrou as fronteiras dos seus poderes constitucionais até novos limites. Curiosamente, pouco ou nada exerceu de alguns dos seus poderes. Vetou apenas onze diplomas (três do Governo e oito do Parlamento). Não dissolveu a Assembleia da República. Não demitiu o primeiro-ministro, embora, na sequência dos incêndios de 2017, tenha exigido pela televisão a demissão da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa. Em compensação, reinventou o exercício da magistratura de influência, transformando-a em magistratura de interferência.
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Em três anos, Marcelo Rebelo de Sousa transformou e modernizou o perfil de exercício do mandato de Presidente da República. É normal que quem ocupa o primeiro lugar na hierarquia do Estado o personalize; afinal, é o único órgão de soberania unipessoal. Mas Marcelo fez mais: empurrou as fronteiras dos seus poderes constitucionais até novos limites. Curiosamente, pouco ou nada exerceu de alguns dos seus poderes. Vetou apenas onze diplomas (três do Governo e oito do Parlamento). Não dissolveu a Assembleia da República. Não demitiu o primeiro-ministro, embora, na sequência dos incêndios de 2017, tenha exigido pela televisão a demissão da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa. Em compensação, reinventou o exercício da magistratura de influência, transformando-a em magistratura de interferência.
A atitude nova e mais interventiva do Presidente da República poderia ter sido — e pode ainda vir a ser — um risco de desestabilização política. Até agora, tem sido assumida de modo positivo. A começar pela forma como contribuiu para o fim da tensão entre os partidos e os ocupantes de órgãos de soberania e para a consequente descrispação da vida institucional e partidária. Mas também para o aumento da confiança dos cidadãos nos seus representantes políticos e nas instituições da República.
A mudança foi conseguida ao apostar numa relação tranquila e distendida com o Governo, o que, reconheça-se, vive também da aposta no mesmo sentido feito pelo primeiro-ministro, António Costa. Ainda que Marcelo nunca tenha deixado de fazer sentir que manda e é o árbitro do poder de Estado em Portugal. E mostrou-o mais de uma vez. No exercício dos vetos, mas principalmente quando exigiu a demissão da ministra. Nesta exigência poderá mesmo, para alguns, ter ultrapassado os limites do papel de Presidente. Este caso pode também ser entendido como revelador de um comportamento de instrumentalização hipócrita do seu estatuto, uma vez que sabia que a ministra sairia do Governo em breve. Assim como pode considerar-se uma interferência abusiva na vida de um partido, o facto de ter recebido em Belém e dado espaço presidencial para uma conferência de imprensa ao militante do PSD Luís Montenegro, que desafiara Rui Rio, mas que não era sequer candidato a líder, pois não tinham sido anunciadas eleições internas. Mas fazer prova do seu próprio poder é normal no exercício de cargos institucionais e políticos e está inscrito de sistema constitucional de checks and balances dos órgãos de soberania.
Se Marcelo conseguiu manter uma relação tranquila com o Governo do PS, apoiado pelo PCP e pelo BE, não conseguiu, porém, a adesão entusiástica dos partidos de direita, da qual é oriundo — foi fundador do PSD e seu presidente entre 1996 e 1999. A líder do CDS, Assunção Cristas, proclamou a sua adesão às posições e atitudes e Marcelo e até já anunciou o apoio à sua eventual recandidatura. O líder do PSD, Rui Rio, tem sido formalmente mais distante, mas nunca o criticou abertamente. É, contudo, verdade que o PSD e o CDS, bem como outros sectores da direita, ainda não digeriram que, depois de entrar no Palácio de Belém, Marcelo não tenha provocado a queda do Governo de esquerda.
Toda a transformação que Marcelo fez no institucional exercício da magistratura de influência, tornando-a mais interventiva, foi possível pela sua capacidade de usar e alargar — até de forma obsessiva — a sua popularidade. Senhor de décadas de experiência política e mediática, tratou de ocupar o espaço mediático e através dele, de forma permanente, ir moldando as relações com os outros órgãos de soberania e com o país. O carácter popular com que tem exercido o seu mandato foi redesenhando e inovando a relação de proximidade com o povo, em termos diversos dos de Mário Soares.
Numa nova era comunicacional e sendo já uma personalidade e um líder da comunicação mediática quando entrou em Belém, Marcelo usou as novas técnicas e os novos instrumentos comunicacionais para criar o Presidente-sempre-presente. Procurou falar sobre tudo e estar presente junto a todos. Usou o peso da sua comunicabilidade e transformou-o em poder presidencial de magistratura de interferência, mesmo que erodindo a gravitas do órgão de soberania. Fê-lo para ajudar a ultrapassar as dificuldades dos agentes políticos tradicionais (os partidos e os seus dirigentes) em fazer passar as suas mensagens, espartilhados que estão por hábitos e procedimentos desfasados no tempo. Fê-lo ainda para impedir que novos agentes políticos dominem o espaço público, cavalgando a demagogia e até o populismo.
Foi o Presidente-sempre-presente, próximo de todos, popular. Mas sempre dentro das margens do sistema e nunca contra ele. Nunca populista.