Como se explica um vinho de 30 mil euros?
Liber Pater 2015, da região de Bordéus, desafia as convenções ao ser produzido em vinhas de pé-franco e utilizar castas autóctones pré-filoxéricas. Uma rebeldia francesa que o mundo valoriza como um vinho único e histórico, mas que em Portugal nem é assim tão rara.
Apresentado como um visionário no mundo do vinho, Loïc Pasquet veio a Portugal, à Essência do Vinho, para dar a provar os seus vinhos de sabor antigo, “os Bordéus mais exclusivos do mundo”, entre eles a última novidade, o Liber Pater 2015, um engarrafamento de apenas 240 garrafas que está agora a colocar no mercado pelo preço de 30 mil euros. Cada uma, entenda-se!
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Apresentado como um visionário no mundo do vinho, Loïc Pasquet veio a Portugal, à Essência do Vinho, para dar a provar os seus vinhos de sabor antigo, “os Bordéus mais exclusivos do mundo”, entre eles a última novidade, o Liber Pater 2015, um engarrafamento de apenas 240 garrafas que está agora a colocar no mercado pelo preço de 30 mil euros. Cada uma, entenda-se!
E se a questão é saber como é que um vinho pode atingir esses valores astronómicos, reflectir antes um pouco sobre as razões que levam um produtor deste patamar a escolher vir a uma feira de vinhos em Portugal para fazer a apresentação mundial daquele que é o mais caro vinho de sempre, pode também ajudar-nos a explicar muitas coisas.
Desde logo que não devemos ignorar o lugar que temos no mundo do vinho, principalmente quando se fala de diversidade, história, e tradição, mas também aprender a valorizar as acções que por cá se fazem, já que, pelos vistos, não serão assim tão insignificantes aos olhos dos grandes especialistas e compradores mundiais.
Quanto aos vinhos, é claro que são únicos e de qualidade absolutamente extraordinária. Impressiona a intensidade e substância que revelam na boca, o sabor fresco, harmonia subtil, equilíbrio, elegância e textura aveludada, que são transversais a todos eles independentemente da identidade distinta que lhes confere cada colheita. Provaram-se brancos das colheitas de 2009 e 2010 e os tintos de 2007, 2009, 2010 e 2011, todos normalmente vendidos acima dos quatro mil euros a clientes chineses, russos e de alguns emirados árabes. Uma prova única e memorável com cenário a condizer na Sala do Tribunal do Palácio da Bolsa, no Porto, que terminou com a novidade da colheita de 2015.
Em todos Loïc Pasquet destaca a originalidade do seu projecto de sete hectares na região de Graves, na margem esquerda do rio Garona, onde procura replicar os “vinhos de sabor antigo” que deram fama à região de Bordéus e levaram à sua demarcação, em 1855. Ou seja, vinhos elegantes, frescos e frutados como eram os das vinhas anteriores à praga da filoxera, plantadas sem necessidade do porta-enxertos americano.
“Quando mudas tudo, mudas o sabor do vinho”, explica o antigo engenheiro da Peugeot que, na viragem do século, decidiu “seguir o sonho” de “descobrir os vinhos finos de Bordéus de antes da filoxera”. Decidiu-se por uma parcela com 80m de altitude média e solos com uma camada superior de terrenos arenosos, “resultante da acumulação de detritos de granito que o rio traz desde o maciço central pirenaico”, onde produz em regime de permacultura. Sem intervenção de maquinaria, uma mula puxa o arado como antigamente e também as técnicas de vinificação imitam as do século XIX, com intervenção mínima, macerações longas e fermentação em barricas.
A par das castas que hoje são típicas, com o Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc ou Petit Verdot, a aposta passou também pela recuperação de castas da época anterior à filoxera, como Saint-Macaire, Castets, Mancin, Lauzet, Camaralet, Prunelard, Tarney Coulant ou Marselan. Ao todo, são 14 as variedades que estavam esquecidas e que pela primeira vez entram agora na composição do Liber Pater 2015. “Um dos mais raros vinhos do mundo, único e controverso, e que põe em causa as regras de uma das regiões mais famosas do mundo”, como é apresentado para justificar o preço de 30 mil euros.
E se a questão é saber como é que um vinho pode atingir esses valores, a resposta bem pode ser a mais cândida – porque é francês –, mas tem por trás uma realidade de cultura, de promoção e de valorização que nos devolvem ao olhar interno.
É que se Pasquet põe de lado os porta-enxertos americanos e recorre as castas pré-filoxéricas, por cá essa é uma experiência com a qual sempre convivemos. Dos míticos Quinta do Noval Nacional, provenientes de uma vinha pré-filoxérica, até aos vinhos de Colares, de vinhas onde a praga nunca entrou. Já para não falar do Porto Scion, um vinho que a Taylor’s lançou nos últimos anos e que é ele próprio – não apenas as castas – pré-filoxérico, cujas 1400 garrafas foram de imediato vendidas a 2500 euros cada uma. O vintage da Noval mais caro e mais raro, o de 1963, tem um valor de mercado à volta de cinco mil euros.
E se há pelo menos 30 anos Luís Pato faz na Bairrada aquilo com que Pasquet sonhou mais recentemente, muito boa gente acha uma exorbitância os 150 euros que tem que pagar pelos seus maravilhosos Quinta do Ribeirinho, de pé-franco plantado em terrenos arenosos. Mas o “Senhor Bairrada” foi ainda mais longe e já está a produzir também em pé-franco em terreno argilo-calcário, onde o risco é muito maior. O Pé Franco Vinhas das Valadas é ainda mais raro – e rateado – mas o preço não vai também além dos mesmos 150 euros.
Também no Dão, há uns anos que o irrequieto José Perdigão vai vinificando pequena parcelas de pé-franco em terrenos graníticos de perfil arenoso. Como experiência, provámos em tempos um Alfrocheiro cuja complexidade, elegância e poder da fruta nos veio imediatamente à memória com a prova do Liber Pater 2015.
Ao contrário de França, onde as castas pré-filoxéricas são uma raridade, “em Portugal são às centenas”, como nos explicou o professor Eiras Dias, que em Dois Portos, na Estação Vitivinícola Nacional, tem uma colecção de todas ou quase todas as castas oficialmente reconhecidas em Portugal. E são mais de 300.
A grande diferença é que em França o vinho é cultura e assim é oficialmente encarado, divulgado e promovido. Por cá - e apesar de algumas regiões serem Património da Humanidade - é antes visto como álcool e praga a combater, em vez da educação como cultura e património únicos.