“Menstruador@s no parlamento”: entre a inclusão e o apagamento

Mulheres antes de nós desafiaram a ideia de homem como animal racional, reclamando-nos como sujeitos racionais e questionando a própria ideia de racionalidade absoluta. Outras epistemologias surgiram, outras formas de conhecimento. Outras visibilidades.

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“Ensinavam-me, e eu aprendia”, escreve Maria Isabel Barreno nas primeiras páginas de A Morte da Mãe:

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“Ensinavam-me, e eu aprendia”, escreve Maria Isabel Barreno nas primeiras páginas de A Morte da Mãe:

"O homo faber; o homo sapiens; o homem é um animal racional; os homens descobriram o fogo; os homens da pré-história; o homem é um animal religioso; os patriarcas; deus é pai; os faraós; o homem é um animal social; os filósofos gregos; os imperadores romanos; as eternas aspirações do homem; os guerreiros, os cavaleiros, os soldados, os marinheiros; os descobridores, os aventureiros, o homem da renascença; o homem tem sede de conhecimento; os físicos, os matemáticos; os homens lutam pela sua liberdade; os homens e a sua angústia vivencial; os operários, os capitalistas; os homens fazem o progresso técnico; os homens do governo; a declaração dos direitos do homem; os homens da imprensa; os homens lutam pelo poder; a exploração do homem pelo homem; milhões de homens morreram na guerra; os homens de boa vontade; a arte é uma necessidade do homem; o homem face à natureza…
Um da perguntei:
- 'ONDE É QUE ESTÃO AS MULHERES?'”

Foi pela mão e marcha de mulheres como a Isabel que avançámos. Sempre cá tínhamos estado, mas um modelo de pensamento e linguagem que tinha o homem como referente universal insistia em deixar-nos na sombra, remeter-nos para notas de rodapé. O resgate da história da outra metade do mundo foi um “trabalho detectivesco”, como escreveu Maria Teresa Horta. Começou a contar-se a história das mulheres.

O poder do nome e o poder da palavra foram essenciais nesse trabalho: nós, mulheres, visíveis na história, na ciência, na política e na arte. Nós, mulheres, no centro de um movimento, bebendo da resistência de mulheres como a Teresa e a Isabel, tantas como nós, antes de nós. Nada disto é uma questão puramente semântica (as palavras nunca são palavras, como sabiam a Isabel e a Teresa, em tempos onde escrever lhes custou um processo judicial).

Mulheres como nós, antes de nós, lutaram para que fôssemos finalmente vistas como cidadãs de pleno direito, pessoas de plena humanidade — e não homens diminuídos ou incompletos. Mulheres antes de nós desafiaram a ideia de homem como animal racional, reclamando-nos como sujeitos racionais e questionando a própria ideia de racionalidade absoluta. Outras epistemologias surgiram, outras formas de conhecimento. Outras visibilidades.

Os direitos das mulheres são direitos humanos, proclamou-se (ainda que se insista em falar na “declaração dos direitos do Homem”). Começámos a falar de violência contra as mulheres. A exigir a libertação das mulheres. A lutar pelos direitos reprodutivos, numa marcha lenta cheia de avanços e recuos. Uma luta incompleta e desigual, travada por mulheres como nós, antes de nós.

E, tão longe que estamos de terminar a marcha, novos discursos surgem repetindo a mesma omissão: na saúde, nas referências históricas, na luta política. A Marcha das Mulheres em Londres, num tweet entretanto apagado, escrevia (reportando-se ao contexto britânico) que “em 1973 havia 23 menstruador@s no Parlamento” (menstruators, no original). Expressão similar e pretensamente neutra usou a Teen Vogue, referindo-se a “Pessoas menstruadoras negras” — a mesma publicação que num controverso artigo distinguiu tipos de corpos no binário “pessoas com próstata” e “pessoas sem próstata” (representando estas últimas num gráfico que omitia o clítoris). Mulheres renomeadas como não-homens, menstruadoras, pessoas com colo do útero. As mulheres ausentes na própria definição de feminismo, apresentado como defesa da “igualdade política, económica e social entre seres humanos” num tweet recente da UN Women (numa definição estranhamente simétrica ao clássico “não precisamos de feminismo, precisamos de humanismo”). A mesma omissão, proclamada em nome da igualdade. Onde é que estão as mulheres, no feminismo?

Tão longe de terminar a marcha, rodando 360 graus. A mesma omissão, a mesma invisibilidade. E a pergunta ainda tão presente da Isabel: Onde é que estão as mulheres?

Evitar a palavra mulheres não é progresso nem inclusão, mas apagamento — da história e das lutas das mulheres. Porque foi por serem mulheres que aquelas pessoas, sub-representadas no Parlamento britânico como na maioria dos outros, enfrentaram barreiras e impedimentos na participação da vida pública. É também um apagamento da violência contra as mulheres, porque esta é indissociável da violência exercida sobre os nossos corpos: não são “pessoas menstruadoras” que morrem durante a própria menstruação num exílio forçado, consideradas sujas e impuras.

Porque a mutilação genital não mutila “pessoas com clítoris”; porque o controlo dos direitos reprodutivos e a negação do aborto livre e seguro não impacta sobre “pessoas com útero”. Porque a violência obstétrica não é exercida sobre “pessoas grávidas”, e o breast ironing não agride “pessoas com mamas”. Porque a infame cultura da violação não penaliza sobretudo “pessoas com vagina”. Fetos selectivamente abortados não espelham um ódio a genitais, mas um ódio a mulheres: nascer do sexo feminino não é um privilégio, mas uma sentença de morte em tantos contextos ainda no presente. Não são órgãos o alvo do ódio: são as mulheres.

Sim, sabemos que nem todas as mulheres têm útero, que nem todas as mulheres menstruam — mas o custo da inclusão não pode ser o apagamento, o do retorno a pensar-nos como não homens. O compromisso com outras vozes e visibilidades não pode custar o apagamento das mulheres (e por que razão não são os homens renomeados como “não-mulheres”, ou como ausência de útero?). A inclusão não pode confundir-se com – nem ser pretexto para – a perpetuação da misoginia. A inclusão far-se-á pela soma de visibilidades, não pelo apagamento de metade da humanidade.