Os índios krahô a verem-se a eles próprios
Em vez da visão solene de uma sociedade mumificada, uma pureza que importaria preservar, o filme de João Salaviza e Renée Nader Messora introduz na aldeia krahô uma gota de distância crítica face à sua própria identidade.
Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos não é um filme sobre os índios krahô, é um filme com os índios krahô. A distinção é uma questão de distância, da distância dos autores face à realidade e aos indivíduos que o seu filme retrata, e se se começa por — na aparência — preservar aquela linha invisível entre observadores e observados, comum na acepção mais estereotipada do cinema etnográfico, cedo se percebe que o movimento do filme caminha para a dissolução dessa linha: a presença dos krahô não é passiva, é participativa, tal como não é “objectificada”, mas “individualizada”. A relação de Salaviza e Renée Nader com os actores do filme é como um convite à dança, quer dizer, um convite à ficção. Os actores krahô são eles próprios mas não são só eles próprios, são os seus “duplos” ficcionais mas transportando todo o peso da suas identidades individuais (e culturais), e o que nasce daí — desse role playing que monta e desmonta estereotipos — e de facto uma ficção, um jogo a que todos se prestam numa sensação de comunhão criativa, onde o olhar dos “etnógrafos” não se sobrepõe ao dos “etnografados”, antes é devolvido, à mesma altura, por eles. E é esse jogo, assim jogado, da ficção a imiscuir-se nos trâmites do cinema etnográfico, que inscreve Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos numa tradição que vai (no seu mais “selvagem”) do Tabu de Murnau e Flaherty até (no seu mais “orientado”) a diversos exemplares da cinematografia de Jean Rouch.
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Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos não é um filme sobre os índios krahô, é um filme com os índios krahô. A distinção é uma questão de distância, da distância dos autores face à realidade e aos indivíduos que o seu filme retrata, e se se começa por — na aparência — preservar aquela linha invisível entre observadores e observados, comum na acepção mais estereotipada do cinema etnográfico, cedo se percebe que o movimento do filme caminha para a dissolução dessa linha: a presença dos krahô não é passiva, é participativa, tal como não é “objectificada”, mas “individualizada”. A relação de Salaviza e Renée Nader com os actores do filme é como um convite à dança, quer dizer, um convite à ficção. Os actores krahô são eles próprios mas não são só eles próprios, são os seus “duplos” ficcionais mas transportando todo o peso da suas identidades individuais (e culturais), e o que nasce daí — desse role playing que monta e desmonta estereotipos — e de facto uma ficção, um jogo a que todos se prestam numa sensação de comunhão criativa, onde o olhar dos “etnógrafos” não se sobrepõe ao dos “etnografados”, antes é devolvido, à mesma altura, por eles. E é esse jogo, assim jogado, da ficção a imiscuir-se nos trâmites do cinema etnográfico, que inscreve Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos numa tradição que vai (no seu mais “selvagem”) do Tabu de Murnau e Flaherty até (no seu mais “orientado”) a diversos exemplares da cinematografia de Jean Rouch.
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VIDEO_CENTRAL
Começa-se a ver isso muito bem num punhado de planos e cenas iniciais — aquelas, nocturnas, em que personagens se movimentam na selva perante uma câmara que é que como se estivesse escondida, receosa de ser descoberta, mas que logo a seguir dão lugar a umconvívio íntimo, com o plano das mulheres krahô que se banham no rio enquanto conversam sobre os assuntos mais fúteis e banais, conselhos de beleza e maquilhagem. A dessacralização é imediata, a linha entre as personagens e o espectador não-krahô (por inerência demográfica, o espectador maioritário) fica quebrada, não por “identificação” mas por anulação da estranheza, e descobrimos que também aqui (como em todas as ficções) há lugar para o humor. Garantido isso, o filme pode continuar a jogar o jogo da representação estereotipada (certos rituais, certos diálogos, plenos de solenidade), carregar até nas tintas de algum “exotismo” de matriz cinematográfica (aqueles planos com as cores carregadas, como se fosse a selva brasileira reconstituída no artifício de algum estúdio hollywoodiano) porque o seu movimento, como o espectador rapidamente descobrirá, é uma fuga do estereótipo etnográfico e é uma fuga do estereótipo “exótico”.
De certa forma, é uma fuga da tradição: há um rapaz que não se quer tornar no novo xamã da aldeia porque isso implica abdicar de coisas e de planos que ele quer para a sua vida. E então enceta um périplo que o leva para longe da aldeia (como quase todos os filmes de Salaviza também este tem o seu móbil no facto de alguém “sair de casa”), suficientemente longe para entrar em contacto com a sociedade “branca” e parecer temporariamente rendido aos flippers e outras amenidades de um centro de acolhimento para povos nativos — lugar, aliás, onde os jogos de espelhos e de estranhezas se convertem em algo parecido com uma comédia etnográfica, e onde os olhares se encontram à mesma distância (aquele plano, notável, onde há este diálogo entre o protagonista e uma funcionária do centro: “— Você não percebe nada da vida dos índios”, “— E tu não percebes nada da vida dos brancos”).
Tudo isto é o suficiente para introduzir no filme algo de muito importante. Em vez da visão solene de uma sociedade mumificada, condenada à repetição eterna de tradições e rotinas em nome de uma “pureza” que interessaria preservar, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos inocula nesta aldeia krahô uma gota de distância crítica face à sua própria identidade. Algo que pode ter muitos nomes, mas assentemos num: “progressismo”. Ideia tão bonita na dita “sociedade ocidental” como numa aldeia krahô.