Entre consulta e cirurgia, obesos esperam 16 meses pelo tratamento

Estudo da Entidade Reguladora da Saúde, divulgado nesta quarta-feira, diz que há pouca oferta a nível nacional e falta de pessoal, o que provoca demora no tratamento de uma doença que afecta quase 17% da população.

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O tempo médio de espera por uma cirurgia é de oito meses Miguel Manso

Os utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS) sabem do que se queixam. Das (poucas) reclamações relacionadas com a obesidade que chegaram à Entidade Reguladora de Saúde (ERS) entre 2015 e Maio de 2018, 63% diziam respeito ao acesso aos cuidados de saúde nesta área, sobretudo à falta de resposta atempada ao tratamento da doença que afectava, em 2014, 16,6% da população portuguesa.

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Os utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS) sabem do que se queixam. Das (poucas) reclamações relacionadas com a obesidade que chegaram à Entidade Reguladora de Saúde (ERS) entre 2015 e Maio de 2018, 63% diziam respeito ao acesso aos cuidados de saúde nesta área, sobretudo à falta de resposta atempada ao tratamento da doença que afectava, em 2014, 16,6% da população portuguesa.

Os resultados do estudo da ERS sobre Cuidados de Saúde Prestados no SNS na Área da Obesidade, divulgados nesta quarta-feira, confirmam que há razões para queixas: os utentes esperam, em média, oito meses pela primeira consulta de cirurgia da obesidade e outro tanto pela realização da mesma cirurgia. Ou seja, 16 meses no total. A falta de pessoal é apontada como a principal causa para a espera.

E o problema começa muito antes do encaminhamento para cirurgia. Apesar de a abordagem nacional de combate à obesidade passar pela intervenção precoce e integrada, ao nível dos centros de saúde, em interligação com as escolas, é logo aqui que as coisas começam a falhar. “A capacidade de resposta dos cuidados de saúde primários nesta área encontra-se diminuída pela constante carência de nutricionistas nos ACES [Agrupamentos de Centros de Saúde]”, lê-se nas conclusões do estudo.

A zona de intervenção da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo é a mais carenciada nesta matéria, com cada nutricionista a ter sob sua responsabilidade, em 2017, 27.112 utentes. Os dados compilados pela ERS mostram ainda que, no ano anterior, havia 15 ACES do país sem qualquer nutricionista.

Se o processo começa lento, não acelera a partir do momento em que os doentes transitam para a rede hospitalar, conforme se viu atrás. E aqui, a escassez de pessoal e de oferta também é apontada como a principal razão para a demora no tratamento.

Em todo o país há apenas catorze centros de tratamento reconhecidos pela Direcção-Geral de Saúde no SNS, e cinco centros privados com convenção com este serviço. A distribuição geográfica também não ajuda. Olhando para a oferta e a procura potencial das populações, a ERS conclui que “a grande maioria dos concelhos de Portugal continental têm um nível de acesso baixo a cirurgias de obesidade”.

Pior desempenho

E se olharmos para a população residente que se encontra a menos de 90 minutos (limite máximo admissível em caso de cirurgias) de um centro de tratamento de obesidade, por distrito, é fácil perceber que, como em tantas outras coisas, o interior do país é o mais prejudicado: Bragança não tem qualquer centro de tratamento a essa distância temporal; em Castelo Branco, apenas 16% da população consegue chegar a um desses hospitais em menos de 90 minutos, número que sobe para 32% na Guarda e 71% em Beja.

No litoral e grandes centros urbanos, onde está concentrada a oferta ao nível de cirurgias, a situação não melhora. Olhando para o número de utentes atendidos e os que se encontram em lista de espera (procura efectiva), verifica-se que o Centro Hospital de São João, no Porto – o único hospital do país classificado como Centro de Elevada Diferenciação do Tratamento Cirúrgico de obesidade – tinha, em 2017, de longe, o maior número de pessoas ao seu cuidado: 2070. Destas, 89% encontravam-se em lista de espera para cirurgia no último dia daquele ano.

Os dados do estudo da ERS mostram também que 95% dos utentes do São João tiveram um período de espera superior ao Tempo Máximo de Resposta Garantido (TMRG) fixados por lei para serem atendidos em consulta de obesidade. A percentagem média, conseguida através da análise dos anos de 2015, 2016 e 2017, é ainda muito elevada no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, na Amadora (96%), e continua a ser alta no Hospital do Espírito Santo de Évora, E.P.E. (87%), no Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães (83%), e nos Hospitais da Universidade de Coimbra (73%).

Olhando para os utentes operados e em lista de espera com tempos superiores ao TMRG, verifica-se que 93% das pessoas que tiveram uma cirurgia nesta área no São João em 2017 fizeram-no nessas condições (a pior performance é do Centro Hospital do Baixo Vouga, com 95% dos casos, mas muito menos doentes), enquanto no Centro Hospitalar Universitário do Algarve, nesse mesmo ano, 96% das pessoas que estavam em lista de espera já se encontravam para lá do TMRG. O Hospital do Espírito Santo de Évora surgia logo atrás, com 80% dos utentes em lista de espera nessa situação. 

Feitas as contas, o resultado é esclarecedor: "No âmbito da monitorização levada a cabo em 2018 aos tempos de espera para atendimento nos estabelecimentos do SNS, a ERS constatou que o tratamento da obesidade é a área com a maior taxa de incumprimento dos TMRG, tanto para a primeira consulta de especialidade como para a  cirurgia programada", lê-se no estudo.

De novo, não há mistério para a ERS sobre as razões destes dados e da média de espera de oito meses, registada em 2017, por uma cirurgia de tratamento da obesidade. “Diversos hospitais do SNS têm transmitido à ERS que a carência de profissionais de saúde, em particular anestesistas, tem vindo a impactar negativamente a sua capacidade de resposta para realização de cirurgias”, lê-se no estudo, com a indicação suplementar que “o levantamento realizado pela Ordem dos Médicos ao número de anestesistas, em 2017, corrobora essa informação”. Segundo estes dados, nenhum dos hospitais analisados neste estudo tinha o quadro de anestesistas adequado às necessidades, com o Algarve a aparecer como tendo apenas 41% dos profissionais desta área de que necessitava, ocupando o pior lugar numa lista em que o Hospital de Braga e o Centro Hospitalar do Porto aparecem como os mais bem servidos, com 84% das vagas de anestesistas necessários preenchida.

Tanto no caso dos anestesistas como dos nutricionistas, a ERS lembra que o Governo decidiu, em 2018, aumentar o número destes profissionais.