A flor à beira do pântano

Uma primeira obra atenta, segura, sobre uma mulher que se vê obrigada a refazer a vida; podia ser mais uma variação sobre Lucrecia Martel, mas é felizmente mais do que só isso.

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Ninguém negará que, ao longo das últimas décadas, a América Latina tem sido um verdadeiro viveiro de bom cinema de autor – e não precisamos de falar apenas de Lucrecia Martel, podemos também citar Pablo Larraín, Matías Piñeiro, Carlos Reygadas. Um dos mais recentes “acrescentos” à lista, Marcelo Martinessi transporta uma carga adicional: vem do Paraguai, país que só depois do regresso à democracia em 1990 começou verdadeiramente a existir cinematograficamente. As Herdeiras será, então, o filme paraguaio mais divulgado de sempre – estreado na competição de Berlim em 2018, saiu do festival com o prémio (inteiramente merecido) de melhor actriz para Ana Brun e com o prémio Alfred Bauer para “filme que abre novas portas à arte cinematográfica”.

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Ninguém negará que, ao longo das últimas décadas, a América Latina tem sido um verdadeiro viveiro de bom cinema de autor – e não precisamos de falar apenas de Lucrecia Martel, podemos também citar Pablo Larraín, Matías Piñeiro, Carlos Reygadas. Um dos mais recentes “acrescentos” à lista, Marcelo Martinessi transporta uma carga adicional: vem do Paraguai, país que só depois do regresso à democracia em 1990 começou verdadeiramente a existir cinematograficamente. As Herdeiras será, então, o filme paraguaio mais divulgado de sempre – estreado na competição de Berlim em 2018, saiu do festival com o prémio (inteiramente merecido) de melhor actriz para Ana Brun e com o prémio Alfred Bauer para “filme que abre novas portas à arte cinematográfica”.

É um pouco duvidoso que As Herdeiras abra qualquer tipo de portas novas, a não ser à possibilidade de filmar no Paraguai histórias paraguaias: é uma primeira longa que não quer inventar nada, começando até por fazer pensar, nos seus primeiros momentos, numa variação sobre o seminal Pântano da Martel (que, diga-se desde já, foi “tutora” do realizador num dos múltiplos ateliers de desenvolvimento e financiamento por que o filme passou). Há qualquer coisa de mal-estar, de malsão, de mulheres atoladas num pântano venenoso, agarradas ao passado – mas essa sensação de “sub-Martel” desfaz-se aos poucos, com Martinessi a introduzir lentamente pequenos “pauzinhos na engrenagem” que fazem uma radiografia sensorial de uma sociedade que continua a viver agarrada ao passado.

Há uma mulher, Chela (Brun), que está aterrorizada com a perda do seu estatuto social: herdeira de uma família rica caída na ruína, a necessidade de vender a herança torna-a numa reclusa convencida que toda a gente tem pena dela pelas costas. Chiqui, que com ela vive e se ocupa do dia-a-dia, começa por parecer ser companheira, governanta, parente, irmã, antes de percebermos que, na verdade, Chela e Chiqui são um casal. E o que se segue, contado com uma bem-vinda atenção aos pormenores, é a história do regresso de Chela à vida, do modo como as circunstâncias conspiram para a obrigar a, talvez pela primeira vez, se ver obrigada a tomar conta de si própria. E Ana Brun é notável na maneira como faz passar, de modo discreto mas comovente, a tortura de ter de sair da casca, de se expôr aos outros, de sentir e mostrar desejo e vontade de viver; e Martinessi filma-a com grande ternura e grande pudor, pelo meio de uma história que talvez seja demasiado frágil para uma longa-metragem mas que é contada com inegável segurança. Não se descobre nada de novo em As Herdeiras, pois não, mas é um filme que gostamos que exista, e que exista desta maneira.

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