Identificada molécula que impede que a caixa de correio no cérebro fique cheia
Cientistas portugueses perceberam que molécula está envolvida no processo de regulação do equilíbrio do cérebro.
Imagine que o cérebro é como uma caixa de correio electrónico e que a transmissão de informação entre neurónios funciona como o envio de e-mails entre células. Ao estudarem esse processo, cientistas portugueses identificaram uma molécula que impende que a caixa de correio do cérebro fique cheia ou seja até eliminada, isto é, que estabiliza a comunicação entre neurónios durante o desenvolvimento do sistema nervoso ou durante processos como a formação de memórias. Publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), este trabalho poderá ser essencial para compreender mecanismos de doenças neuropsiquiátricas e neurodegenerativas.
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Imagine que o cérebro é como uma caixa de correio electrónico e que a transmissão de informação entre neurónios funciona como o envio de e-mails entre células. Ao estudarem esse processo, cientistas portugueses identificaram uma molécula que impende que a caixa de correio do cérebro fique cheia ou seja até eliminada, isto é, que estabiliza a comunicação entre neurónios durante o desenvolvimento do sistema nervoso ou durante processos como a formação de memórias. Publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), este trabalho poderá ser essencial para compreender mecanismos de doenças neuropsiquiátricas e neurodegenerativas.
Sabe-se que processos cerebrais – como a aprendizagem ou a formação de memórias – dependem de alterações constantes na comunicação entre neurónios. “Aquilo que se julga há vários anos é que essas alterações têm de ser compensadas [com o mecanismo agora estudado] porque, de outra forma, variam entre a actividade neuronal extrema e o silenciamento dessa actividade”, explica Ana Luísa Carvalho, do Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra e coordenadora do estudo.
Como tal, há várias décadas que existem propostas teóricas sobre como a actividade cerebral estável se mantém e, nos últimos 20 anos, existem mesmo provas experimentais de que certos mecanismos preservam o equilíbrio dessa actividade. “Mas sabe-se pouco como esses processos de estabilização da actividade cerebral acontecem a nível molecular e quais são as moléculas envolvidas”, conta Ana Luísa Carvalho.
“O objectivo principal do estudo passou por identificar moléculas envolvidas na plasticidade homeostática [que mantém a comunicação entre neurónios em níveis estáveis], um fenómeno descrito há 20 anos e que se julga ser importante para afinar a actividade das redes neuronais durante o desenvolvimento e em resposta às alterações sinápticas associadas ao armazenamento de informação no cérebro”, diz por sua vez Mariline Silva, aluna de doutoramento no CNC e primeira autora do trabalho, num comunicado do CNC.
Por isso, a equipa procurou essas moléculas através de um rastreio de transcriptómica em neurónios de ratos feito em colaboração com a Universidade de Aveiro. Nesse rastreio analisaram-se todos os genes que tinham a expressão (actividade) alterada, assim como reguladores de outros genes. Acabaram por encontrar o micro-ARN-186.
Os micro-ARN são pequenas moléculas que regulam a expressão de proteínas. “Encontrámos um micro-ARN que é crucial para a estabilização da actividade neuronal e, desta forma, para a estabilização da comunicação entre neurónios quando há alterações dramáticas nessa comunicação”, indica a cientista. Embora as funções deste micro-ARN já sejam conhecidas em células de outros órgãos, não se sabia praticamente nada sobre a sua função no cérebro.
Durante o estudo, a equipa procurou saber quais seriam as proteínas-alvo do micro-ARN-186 e descobriu que regula a proteína GluA2, que é um dos constituintes de receptores de neurotransmissores. “Este micro-ARN regula o número e a composição de receptores capazes de receber a mensagem”, conclui Ana Luísa Carvalho.
A equipa testou então essa hipótese – de que este micro-ARN é importante para a existência de uma adaptação de plasticidade homeostática – ao alterar geneticamente neurónios do hipocampo de ratos. “No seu processo de resposta, as células alteram os seus níveis de micro-ARN e fizemos artificialmente o mesmo ou então contrariámos aquilo que as células normalmente fazem”, diz a investigadora.
“Quando contrariámos os níveis do micro-ARN, vimos que as células deixaram de ser capazes de fazer o processo de adaptação.” Isto é, tanto quando aumentavam os níveis do micro-ARN como quando inibiam a sua expressão, os processos de adaptação das células perdiam-se. Confirmou-se assim que o micro-ARN-186 participa nos mecanismos homeostáticos que estabilizam a actividade neuronal no hipocampo (parte do cérebro envolvida na aprendizagem e formação de memórias).
Autismo e Alzheimer
Portanto, este processo pode ser ilustrado com a metáfora dos e-mails. “O cérebro tem formas de ajuste que tornam a transmissão de informação fluida – a chamada plasticidade homeostática – e este estudo demonstra que o micro-ARN-186 coordena esta forma de ajuste”, refere-se no comunicado. Quando a plasticidade homeostática se desregula, a caixa de correio do cérebro fica cheia e não pode receber mais mensagens. Por outro lado, pode ser eliminada por baixa utilização. O micro-ARN-186 serve assim para que nenhuma destas situações aconteça.
“Há um grande interesse na plasticidade homeostática para se compreender doenças psiquiátricas: há diferentes evidências que mostram que estes processos podem estar desregulados em doenças neuropsiquiátricas como o autismo e a esquizofrenia. Também já começa a haver alguma evidência que estes processos são alterados nas doenças neurodegenerativas como na doença de Alzheimer”, indica Ana Luísa Carvalho. “É importante compreender como estes processos acontecem para se perceber de que forma são desregulados nas doenças.”
No futuro, a equipa pretende encontrar outros alvos do micro-ARN-186. “Um outro aspecto que nos interessa é o papel do micro-ARN-186 no stress crónico. O stress prolongado pode ser causador de alterações cognitivas e existem evidências que a expressão do micro-ARN-186 está alterada no cérebro nessas condições”, revela no comunicado a cientista. “Estamos a testar a possibilidade de a manipulação nos níveis do micro-ARN-186 poder impedir as alterações na comunicação entre neurónios e os défices cognitivos associados ao stress crónico.”