Um lugar especial no inferno do “Brexit”

Antiga ministra britânica Clare Short reflectiu com o PÚBLICO sobre as promessas de quem promoveu o divórcio europeu a um eleitorado descontente e os números que o apontam como insustentável. E acusou: “O ‘Brexit’ foi vendido às pessoas de forma desonesta”.

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May tem sido acusada de estar a vender uma fantasia aos britânicos EPA/KIRSTEN NEUMANN

Quando Donald Tusk questionou sarcasticamente as condições de um certo “lugar especial do inferno”, tinha debaixo da mira um grupo perfeitamente identificado: “Os que promoveram o ‘Brexit’ sem terem sequer um rascunho de um plano para o concretizar”. Os destinatários da provocação do presidente do Conselho Europeu não terão problemas em refutá-la. Mas o seu timing e o conteúdo, numa altura em que o processo de saída do Reino Unido da União Europeia se atasca em Londres e congela em Bruxelas, evidenciam de forma clara que, por mais votações desconcertantes no Parlamento britânico ou rondas de negociações infrutíferas na Comissão Europeia que haja, é em volta referendo de 2016 que continuam a centrar-se as paixões, as preocupações e as incompatibilidades entre os vários actores da maior novela política europeia das últimas décadas.

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Quando Donald Tusk questionou sarcasticamente as condições de um certo “lugar especial do inferno”, tinha debaixo da mira um grupo perfeitamente identificado: “Os que promoveram o ‘Brexit’ sem terem sequer um rascunho de um plano para o concretizar”. Os destinatários da provocação do presidente do Conselho Europeu não terão problemas em refutá-la. Mas o seu timing e o conteúdo, numa altura em que o processo de saída do Reino Unido da União Europeia se atasca em Londres e congela em Bruxelas, evidenciam de forma clara que, por mais votações desconcertantes no Parlamento britânico ou rondas de negociações infrutíferas na Comissão Europeia que haja, é em volta referendo de 2016 que continuam a centrar-se as paixões, as preocupações e as incompatibilidades entre os vários actores da maior novela política europeia das últimas décadas.

Para Tusk e para quem defende a permanência no clube europeu revoltam particularmente as promessas que Boris Johnson, Nigel Farage, Liam Fox, David Davis, Michael Gove e outras figuras de proa do universo brexiteer promoveram nos meses que antecederam à consulta popular. Da injecção de 350 milhões de libras por semana no NHS (o sistema nacional de saúde britânico), à condução de uma política comercial independente e profícua ou à capacidade de redução da imigração, sem lesar as necessidades do mercado laboral, não faltaram incentivos na lista para “retomar o controlo” dos mercados, das leis e das fronteiras do Reino Unido.

Lançaram-se números para cima da mesa, fizeram-se estimativas dos ganhos trazidos pelo divórcio, promoveu-se a certeza de que negociar com a UE seria das coisas “mais fáceis da História da Humanidade” (Liam Fox) e denunciaram-se os custos da permanência britânica na UE – com as contribuições excessivas, os perigos da adesão da Turquia para a balança migratória, a dependência comercial, judicial e administrativa ou a “porta aberta ao terrorismo” (Ian Duncan Smith) à cabeça. 

Mas dois anos e meio volvidos da vitória do Leave (51,9%) sobre o Remain (48,1%), durante os quais as negociações com Bruxelas revelaram obstáculos desconsiderados por estes eurocépticos e foram revelados estudos de impacto pouco auspiciosos para o desempenho económico do país após a saída, é justo perguntar: terão os brexiteers contribuído, de forma deliberada, para a construção de uma realidade enganosa sobre a pertença do Reino Unido à UE? E se sim, até que ponto convenceram o eleitorado sobre as virtudes desta tese?

Milhões para a saúde

De passagem por Lisboa para participar num debate sobre o lançamento do terceiro número da revista Mundo Crítico, dedicado ao tema da Cooperação para o Desenvolvimento, Clare Short reflectiu com o PÚBLICO sobre estas questões. A antiga deputada – primeiro trabalhista, depois independente – e ministra do Desenvolvimento Internacional do Governo de Tony Blair não tem dúvidas sobre a “impreparação”, a “irresponsabilidade” e a “ingenuidade” dos promotores do “Brexit”. Mas toma como ponto de partida para a reflexão que as explicações para o resultado do referendo ultrapassam largamente as denúncias de Johnson e companhia sobre os custos de pertencer à UE.

“Acima de tudo, o ‘Brexit’ foi um voto de protesto nas zonas do país que costumavam ter minas de carvão e de aço e empregos fabris – trabalhos duros mas sindicalizados e bem pagos – e que nos últimos 20 anos perderam importância económica e segurança laboral”, explica Short. “Se a saída de empresas ligadas ao sector automóvel e a outras indústrias está hoje a fazer com que os que votaram pela saída compreendam como isso pode afectar os seus empregos e nível de vida, em 2016 as preocupações eram outras. E o referendo era um instrumento de protesto”.

Mas a estratégia “desonesta” da campanha pelo Leave não deve ser ignorada, assume a ex-deputada. A começar por um dos seus principais eixos de abordagem, baseado na factura anual que o Reino Unido tem de pagar a Bruxelas pela filiação. 

Para chegar aos 350 milhões de libras (cerca de 407 milhões de euros) que, de acordo com os brexiteers, poderão ser investidos semanalmente no NHS, tomaram-se em consideração contribuições próximas das 18 mil milhões de libras por ano. Um número manifestamente superior ao resultado líquido entre a contribuição britânica e o investimento europeu no Reino Unido, ao qual se subtrai ainda o “desconto” anual que Margaret Thatcher negociou em 1984.

Feitas as contas e segundo os dados do Tesouro – equivalente ao ministério das Finanças – o Reino Unido contribuiu para o orçamento comunitário com 8,4 mil milhões de libras em 2014, 8,5 em 2016 e 8,9 em 2017. 

“Fez parte da estratégia atirar um número grande para cima da mesa para chamar a atenção das pessoas, sabendo que os britânicos gostam mais do NHS do que da própria família real”, defende Clare Short. “Essa lógica omite que as universidades e os laboratórios recebem muito desse dinheiro de volta ou que as regiões mais pobres têm acesso a projectos de desenvolvimento financiados pela UE. Uma vez que o Reino Unido não pode sair sem manter as obrigações impostas pelos tratados, terá de pagar 35 mil milhões de libras. Continua a ser imenso dinheiro”.

Short não iliba, no entanto, o lado remainer da barricada: “A campanha de David Cameron e George Osborne foi demasiado simplista e também se baseou quase exclusivamente em números. Dizer apenas que a economia iria sofrer com a saída limitou o debate”.

Para além dos sectores assinalados pela ex-ministra como sendo objecto de reinvestimento europeu, o Reino Unido – a par dos restantes Estados-membros – beneficia ainda de apoios à agricultura, a infra-estruturas e ao desenvolvimento tecnológico. 

Fora deste escopo ficam, porém, as escolas, os hospitais, as prisões, o Estado Social, os serviços de emergência e o Exército. Sectores fundamentais, cuja não-admissão na lista de beneficiários dos fundos estruturais europeus ajudou a criar no eleitorado um sentimento de aversão a Bruxelas. E que, assinala Short, foi alimentado pela “imprensa Murdoch”, os media de tendência conservadora e eurocéptica, como o The Sun, detidos pelo magnata australiano Rupert Murdoch, que “durante 25 anos bombearam notícias a culpar a UE por tudo o que acontecia de mal no país”.

Ilusão do império

Um dos instrumentos que serviu o debate da revista Mundo Crítico foi o relatório Global Britain: A Twenty-First Century Vision. Elaborado, em co-autoria, pelo deputado conservador eurocéptico Bob Seely e prefaciado por Boris Johnson, propõe uma estratégia de política externa para um Reino Unido pós-“Brexit”, que reflicta a “cultura, os valores e a História britânica” e que assente em três “liberdades”: liberdade para comercializar, liberdade contra a opressão e liberdade de pensamento.

Para Short o relatório não é mais do que uma confirmação da “falta de preparação e de detalhe” dos promotores do “Brexit” e da “forma desonesta como foi vendido às pessoas”. “Global Britain é um slogan com pouco significado, que se alimenta de uma ilusão nostálgica do Reino Unido enquanto império”, considera a ex-ministra. “É óbvio que todos concordamos com as liberdades, mas é com elas que vamos competir com a China? Não nos dizem nada sobre o que fazer quando sairmos da UE. São soundbytes”, acrescenta.

A reconquista da independência comercial foi “vendida” pelos brexiteers como uma das grandes virtudes do divórcio. Aspirantes de um modelo neoliberal semelhante ao de Singapura, desagrilhoado do fardo burocrático e regulatório europeu, os impulsionadores da saída asseguraram ser possível manter os benefícios e expurgar os malefícios do mercado único. E o bom desempenho da economia britânica e o seu próspero mercado de serviços financeiros seriam trunfos a apresentar a Bruxelas na hora de negociar.

Mas Bruxelas não cedeu ao cherry picking britânico e o Governo de Theresa May, que se comprometeu desde cedo a dar corpo às promessas dos brexiteers, viu-se algemado à orgulhosa, mas desvantajosa, posição de ter de torcer o nariz à união aduaneira e ao mercado único, sem conseguir melhores alternativas. 

Afinal de contas, o mercado único serve quase 450 milhões de pessoas, elimina as taxas e outras barreiras nas exportações e importações entre Estados-membros, não coloca restrições aos serviços financeiros e tem acordos com dezenas de países, incluindo Canadá, Japão, EUA ou Austrália. Ficar de fora implicaria, sempre, um grande salto no escuro. 

Como o comprovam os vários estudos que têm vindo a lume nos últimos meses. O think tank Global Future, por exemplo, olhou para aos custos associados ao fim da liberdade de circulação, às novas barreiras alfandegárias, à factura do divórcio e às contribuições para o orçamento europeu e calculou perdas para a economia em todos os cenários pós-“Brexit”, pelo menos até 2034: 40 mil milhões de libras (cerca de 47 mil milhões de euros) de prejuízos por ano, no caso do acordo de May; 57 mil milhões, num acordo semelhante do Canadá; 17 mil milhões, na “opção Noruega”; e 81 mil milhões numa saída sem acordo.

A própria avaliação que o Governo tory fez das repercussões do “Brexit” na economia conclui que o acordo da primeira-ministra – que ainda carece de aprovação parlamentar, depois de um primeiro chumbo – resultaria num impacto negativo até 3,9% do PIB britânico, ao longo dos próximos 15 anos, equivalente a perdas anuais na ordem dos 100 mil milhões de libras.

Um outro estudo, do Banco de Inglaterra, refere ainda que uma saída “desordeira” implicaria prejuízos superiores aos da última crise financeira mundial. O relatório prevê uma contracção da economia até 8% e o aumento do desemprego até 7,5% logo no primeiro ano após o final do período de transição – Dezembro de 2020.

E passando da teoria à prática, o cenário não é menos pessimista. Aos receios de défices de alimentos e medicamentos soma-se um medo real de se entupirem as estradas britânicas de camiões. Simulações do Imperial College London e das Auto-Estradas de Inglaterra estimam que, por cada minuto extra de controlo alfandegário no Eurotúnel – que liga Folkestone (Inglaterra) a Calais (França) – em hora de ponta, a fila de veículos possa aumentar em 16 quilómetros na auto-estrada M20, o principal acesso rodoviário entre o porto de Dover e os arredores de Londres.

Invasão turca

A contestação dos brexiteers ao mercado único assenta, em grande medida, na liberdade de circulação de pessoas. Dois anos depois do referendo, o site do Vote Leave continua a destacar a iminente adesão da Turquia à UE e, com ela, a possibilidade de uma fatia alargada dos seus 76 milhões de habitantes poderem emigrar livremente para o Reino Unido, juntamente com albaneses, macedónios, montenegrinos e sérvios.

“Nos últimos dez anos vieram mais de 2 milhões de pessoas da UE para o Reino Unido. Imaginem como serão as próximas décadas quando mais países pobres aderirem”, lê-se no site.

Muitos remainers, como Short, não negam as pressões que a imigração estrangeira têm vindo a exercer sobre o Estado social e as políticas de emprego e habitação e defendem que a UE necessita de reformar a sua legislação migratória. “Mas apregoar uma invasão turca apenas revela o quão imaturo e negligente foi o debate sobre o ‘Brexit’”, lamenta a antiga ministra, que atribui aquele tipo de abordagens ao “elemento racista e xenófobo da perspectiva de Farage”.

A redução da migração líquida anual – dos actuais 270 mil para os 100 mil –, através de um programa que privilegia os trabalhadores qualificados, é um objectivo dos brexiteers e do actual Governo. Mas a estratégia pode vir a ter um impacto nocivo em sectores altamente dependentes da mão-de-obra estrangeira, como o NHS, o sector informático ou a produção alimentar.

Independentemente do seu desfecho, forma ou conteúdo, a verdade é que “Brexit” já está a ter repercussões disruptivas na sociedade britânica. Fábricas estrangeiras – com a Nissan ou a Honda – estão a sair do Reino Unido, aumentaram os crimes de ódio nos últimos dois anos, a população está dividida e cansada com o processo de saída, temem-se os efeitos negativos de um segundo referendo e a tradição política entrou numa nova fase, em que o Governo se mantém em funções, apesar das incontáveis derrotas parlamentares, e os deputados se rebelam diariamente contras as disciplinas partidárias. 

Somando a isto o que Clare Short prevê como “um cenário extraordinariamente destrutivo para a economia”, é difícil embarcar na conversa de Donald Tusk e limitar um lugar no inferno apenas para quem o promoveu. Com ou sem lugares especiais, o inferno do “Brexit” tocará a todos os britânicos. A dúvida é saber para onde se alastrará.