Globalização: sectores tradicionais mudaram de agulha mas ainda desafinam
Têxtil e o calçado sofreram os efeitos da globalização mas deram a volta. É uma história que realça o valor da inovação como chave de sucesso. Mas há uma "malha mental" que ficou solta, avisa um sociólogo que estudou o passado recente do Vale do Ave: a redistribuição da riqueza.
Desde a entrada da China na Organização do Comércio Mundial (2001) e do fim do Acordo Multi-Fibras (entre 1995 e 2005) a indústria do têxtil e vestuário (ITV) perdeu cem mil postos de trabalho. Esta sangria parecia dar razão aos que só apontavam defeitos à globalização económica. E esse discurso, que nunca foi verdadeiramente abandonado, voltou a ganhar força. Porquê? Porque se alimenta de questões que não foram resolvidas durante a reinvenção dos sectores tradicionais. Exemplo: a redistribuição da riqueza.
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Desde a entrada da China na Organização do Comércio Mundial (2001) e do fim do Acordo Multi-Fibras (entre 1995 e 2005) a indústria do têxtil e vestuário (ITV) perdeu cem mil postos de trabalho. Esta sangria parecia dar razão aos que só apontavam defeitos à globalização económica. E esse discurso, que nunca foi verdadeiramente abandonado, voltou a ganhar força. Porquê? Porque se alimenta de questões que não foram resolvidas durante a reinvenção dos sectores tradicionais. Exemplo: a redistribuição da riqueza.
Hoje é fácil sacudir os medos do passado com os dados "macro", que mostram que a ITV e o calçado estão a renascer das cinzas. Após década e meia de travessia do deserto, estes sectores recuperaram em indicadores fundamentais.
Nas exportações, em 2018, venderam mais ao exterior do que vendiam em 2000, ano em que ainda havia barreiras e quotas a proteger as vendas de Portugal. No emprego, estes sectores têm vindo a recuperar desde 2011 (no caso do calçado) e desde 2014 (no caso do têxtil e vestuário). No volume de negócios, a indústria têxtil e vestuário (ITV) ainda não regressou aos níveis de 1999 ou 2000, mas desde 2012 está numa rota de aproximação a esses valores. Dir-se-ia que o “diabo” chegou, mas foi-se embora – ainda que muitos tenham comido o pão que ele amassou.
As chaves desta recuperação são conhecidas: inovação de processos e de produto; desenvolvimento tecnológico e maior agilidade; empresas mais organizadas (e mais pequenas também), “com a intuição e a experiência dos empresários da velha guarda aliada ao saber técnico de gestores e engenheiros da nova geração”, como de resto o PÚBLICO deu conta num exaustivo trabalho publicado em 2014, ano que marcou o fim da destruição de emprego na ITV.
Neste caminho, duas indústrias tradicionais souberam encontrar soluções para gerar mais valor. Cortaram no lead time (tempo de entrega), recuperando encomendas. Conquistaram novas fatias de um mercado geograficamente globalizado com uma aposta na qualidade. Aliaram investigação e produção, passando da mão-de-obra intensiva para a tecnologia intensiva e agora fornecendo as nossas casas, as nossas roupas, mas também outros clientes que antes estavam longe, como a aeronáutica ou o sector automóvel.
Não havia outro caminho?
“A necessidade aguça o engenho”, resume Alberto Castro, professor da Faculdade de Economia e Gestão da Católica-Porto e com um amplo currículo que se cruza com a história do sector do calçado em Portugal.
“Desde o início dos anos 90 que o calçado tinha definido a concorrência em plano internacional como um pilar dos planos estratégicos para o sector”, recorda. Consequentemente, os apoios que a indústria pedia “eram formulados numa lógica de olhar para a frente e não numa lógica defensiva”. Mesmo assim, de 2000 a 2009, a contracção na indústria foi forte, quer ao nível do emprego quer nas vendas.
Porém, o ajustamento foi mais devastador nos têxteis. Os efeitos foram particularmente notórios no Vale do Ave, coração desta indústria que viu as exportações caírem de 8300 milhões em 2001 para 5800 milhões em 2009.
Foi nesse território, de repente assoberbado por um desemprego galopante, que o sociólogo Esser Jorge mergulhou para uma tese de mestrado que acabaria por editar em livro com o título Fabricados na fábrica, Uma narrativa operária no século XXI (Húmus, 2011).
Olhando pelo retrovisor, este professor do Instituto Politécnico do Cávado e Ave, diz que era inevitável a “limpeza” na ITV. “Durante muitos anos havia quem operasse no mercado não numa perspectiva de futuro, mas apenas de sobrevivência. Essas empresas criavam mecanismos de dumping, que tinham reflexo em toda a economia”, sublinha, aludindo aos inúmeros casos de fábricas sem preocupações ambientais, onde ainda se encontraria trabalho infantil nos anos 80 e que tinha no baixo salário a principal vantagem competitiva. Era essa a força da ITV quando Portugal aderiu à EFTA, nos anos 60, mas da qual teve de abdicar, em nome de uma modernização que se afigurava como o único caminho quando o mercado mundial se liberalizou e globalizou efectivamente.
Daniel Bessa chamou a essa mortandade de empresas inviáveis a depuração da ITV, numa entrevista ao PÚBLICO em 2014. O então director-geral da Cotec, que acompanha há décadas a ITV considerava que “se Portugal tivesse insistido numa indústria do têxtil e vestuário de trabalho intensivo, de baixo valor, muito provavelmente já não teria uma única empresa têxtil nem um único emprego têxtil”. “Seguimos a via que tínhamos de seguir, a única de facto ao nosso alcance, tendo resultado daí a perda de um elevado número de empresas e de um número muito elevado de postos de trabalho”, defendeu, na mesma entrevista, insistindo: “A alternativa seria muito pior.”
É no plano das alternativas que hoje em dia reemerge o discurso antiglobalização, com nova força. A recuperação da ITV e do calçado só resolve definitivamente esse combate, porque esse renascimento não resolveu a distribuição da riqueza, anota o sociólogo Esse Jorge. “É a grande ausente do debate económico”, assevera.
A mesma "malha mental"
A ITV mudou de agulha e deixou de ser só a indústria do salário mínimo, como salienta o director-geral da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal. Após três anos de congelamento salarial, fechou-se em 2015 um contrato colectivo que garantiu um ordenado acima do salário mínimo nacional a mais de 50% dos trabalhadores. “O operariado desapareceu, deu lugar à tecnologia. As empresas têm mais-valias superiores, mas não nos enganemos: há uma realidade que é preciso observar”, avisa Esser Jorge.
Essa realidade é a vida de dezenas de milhares de pessoas que perderam o emprego durante o ajustamento. Eram "operários invisíveis" nas linhas das centenárias fiações e grandes fábricas que desapareceram de concelhos como Guimarães e Santo Tirso. E continuam a sê-lo nas novas vidas, refere este investigador. “O operariado têxtil era, sobretudo, feminino. O mais envelhecido foi absorvido pelas reformas antecipadas. Muitas foram para os serviços, ingressaram nas limpezas. Passaram para um sector terciário que tem pouco ou nenhum valor. Continuam a ser invisíveis, ainda que estejam nas casas de muitas famílias de classe média”, anota.
Por isso, "perderam estatuto". “Um operário de fábrica sempre tinha um estatuto que socialmente era superior ao que se reconhece aos trabalhadores das limpezas”, sublinha Esser Jorge, cientista que se doutorou recentemente com uma tese sobre os profissionais da política e que tem dedicado a investigação à sociologia das profissões.
“Quando a crise chegou, alguns viram o desemprego como uma espécie de benesse. Não questionavam o futuro, não tinham capital social ou escolar e pensavam: agora vou descansar um pouco. Só a prática do desemprego lhes ensinou que as prestações sociais não resolviam o problema. Viviam, e viveram sempre, na urgência do aqui e agora, para o momento, e só depois perceberam que a crise era forte e que havia mais.”
Depois do ajustamento da indústria, levaram com os efeitos internacionais da crise do subprime. E a seguir viveram a quase falência do país, salvo por uma troika internacional de credores.
“Muitos dos que perderam o emprego dizem que estão mais satisfeitos hoje do que no tempo da têxtil. Suspeito que isso tenha a ver com a capacidade que ganharam de poder gerir o esforço, algo que não podiam fazer numa fábrica, onde tinham de acompanhar o ritmo da produção”.
No fundo, conclui Esser Jorge, a história nos media é quase sempre a de uma indústria tradicional que deu a volta. Mas no terreno, é preciso cuidar dos vencidos, se se quiser combater discursos assentes em “realidades alternativas”.
Isso implica, defende o sociólogo, introduzir no debate a redistribuição da riqueza, a que o sector conseguiu regressar, com muitos sacrifícios à mistura. E também cuidar dos que foram esquecidos ou se auto-excluíram da renovação. Porque no terreno continua a haver, sem surpresa, empresas e trabalhadores “com traços de antigamente”. No fundo, adverte Esser Jorge, ainda que hoje o sector seja um tecido renovado, e caminha com mais confiança, em muitos casos “a malha mental continua a ser a mesma”.