Quando as perceções contaminam a realidade
Como são hoje construídas as perceções? Estaremos perante a perda total de confiança nos veículos tradicionais de comunicação que muitos consideram capturados por interesses pouco transparentes?
Todos os dias, nós, cidadãos, tomamos decisões, algumas com impacto estritamente individual, outras com graves consequências coletivas que não raras vezes nos surpreendem pelo seu caráter imprevisível ou inexplicável.
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Todos os dias, nós, cidadãos, tomamos decisões, algumas com impacto estritamente individual, outras com graves consequências coletivas que não raras vezes nos surpreendem pelo seu caráter imprevisível ou inexplicável.
Entre possíveis exemplos, foi assim que os ingleses decidiram romper com a integração no projeto europeu, e foi também assim que se instalou o pânico generalizado, em diversos países da Europa e nos Estados Unidos, a propósito da alegada “invasão” de imigrantes. É em perceções como estas que se alicerça a estranha, mas infelizmente cada vez mais comum, opção “democrática” dos cidadãos a favor de lideranças políticas isolacionistas, nacionalistas, musculadas – para não dizer agressivas – da Polónia à América, da Hungria ao Brasil, passando pela Itália...
Serão estas opções dos cidadãos fruto de realidades ou, antes, a consequência de perceções individuais e/ou coletivas que nascem e crescem a partir do terreno fértil dos medos? O medo de estar a ser explorado, o medo de ver a segurança física ameaçada, o medo de perder o emprego, o medo dos riscos vagos da globalização, o medo de não ser capaz de enfrentar a diferença, o medo de perder a memória das coletividades locais ou regionais... Em suma, o medo de perder a autonomia e a liberdade em todas as suas múltiplas dimensões.
É curioso notar, por exemplo, como a discussão britânica sobre o “deve e o haver” das contribuições para o orçamento europeu ofuscou completamente os ganhos inquestionáveis para o país como um todo decorrentes do acesso livre ao mercado interno europeu. A rutura com a realidade permitiu a alguns dos arautos do “Brexit” anunciar que a poupança originada pela saída do projeto europeu permitiria refazer os serviços públicos de saúde e educação sem qualquer justificação quantitativa desta tese.
Se passarmos em revista a agenda da maioria dos partidos europeus de cariz dito “populista”, dificilmente encontramos um que não coloque a chegada dos imigrantes como a grande ameaça no centro das suas preocupações. A Comissão Europeia situa na ordem dos dois milhões os imigrantes que chegaram em 2016 à Europa (2,4 milhões no ano anterior). Em 500 milhões de cidadãos, não pareceria impossível organizar um processo de acolhimento competente e pacífico para acomodar este acréscimo populacional.
Perceções, e decisões coletivas baseadas nessas perceções, parecem ter perdido a necessária conexão com a realidade, o que, na prática, gera não só uma permanente desestabilização mas, sobretudo, pseudo-soluções que não são nem as mais eficazes, nem as mais adequadas; nos dois exemplos acima referidos, note-se que há sempre uma dose de verdade que subjaz ao argumento: o funcionamento da UE precisa de ser melhorado enquanto a concentração de imigrantes em determinadas zonas geográficas da Itália ou da Alemanha gera necessariamente sérios problemas de integração. No entanto, a abordagem destes problemas, porque foi feita numa base emocional – muitas vezes estratégica e intencionalmente amplificada por agendas externas –, não gerou em nenhum destes casos nem uma reflexão séria nem a busca de soluções; gerou antes a desconstrução e a rutura.
Mas não será sempre na base das perceções (por contraponto à realidade) que a história se constrói? Será esta a origem da velha ideia de que a história se repete? Ou a tecnologia, a globalização, a proliferação de fontes não-convencionais de notícias criam hoje novas ameaças?
Como são hoje construídas as perceções? Estaremos perante a perda total de confiança nos veículos tradicionais de comunicação que muitos consideram capturados por interesses pouco transparentes? Estaremos a credibilizar a “realidade” veiculada através das redes sociais, frequentemente a coberto do anonimato, apesar de sabermos que estas não estão sujeitas a qualquer escrutínio?
Haverá apenas grupos que se auto-influenciam, na política como na economia ou na sociedade ou, tendo em mente alguns dos escândalos tecnológicos já denunciados, haverá agendas deliberada e estrategicamente construídas que infiltram as perceções coletivas?
E, neste contexto, qual é o risco que ameaça o sistema democrático que assenta exatamente na valorização das opiniões individuais supostamente isentas e minimamente informadas?
Será que, tal como acontece frequentemente nos mercados financeiros, estamos cada vez mais sujeitos à influência de comportamentos “de grupo”, voláteis e manipuláveis, dos quais, individualmente, não temos consciência?
Ao ter tido o privilégio, que muito agradeço, de ser a diretora por um dia de um jornal que vi nascer e pelo qual tenho um enorme respeito, não consegui resistir ao desafio de pedir aos que o fazem todos os dias, alguns há 29 anos, a sua perspetiva sobre esta questão que considero central no mundo de hoje, também e sobretudo em relação a Portugal. Podemos confiar naquela sensatez que nos alimenta enquanto comunidade há tantos séculos para não nos deixarmos embalar nas perceções sentidas e não verificadas, nas convicções superficiais nunca questionadas?
Com votos de muitos mais aniversários, com a isenção e amplitude de perspetivas que todos apreciamos e é vosso apanágio, o meu “muito obrigada” ao PÚBLICO pelo vosso trabalho!