Na política cultural, esquerda e direita não têm dinheiro para divergir
A ideia de que a direita atende mais ao património e a esquerda à criação contemporânea até pode persistir no papel. Na prática, a fatia do Orçamento de Estado destinada à Cultura é sempre demasiado curta para vincar diferenças ideológicas.
Ano após ano, as gentes da cultura brandem a reivindicação do 1% para o sector no Orçamento de Estado (OE) como uma espécie de número mágico para uma política sustentada numa área a que a esquerda tem reputação de ser mais sensível do que a direita. É uma miragem orçamental que os sucessivos governos, seja qual for a sua inclinação, têm vindo a procrastinar, ainda que a cada ano se esforcem por passar a mensagem de que estão a fazer esse caminho.
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Ano após ano, as gentes da cultura brandem a reivindicação do 1% para o sector no Orçamento de Estado (OE) como uma espécie de número mágico para uma política sustentada numa área a que a esquerda tem reputação de ser mais sensível do que a direita. É uma miragem orçamental que os sucessivos governos, seja qual for a sua inclinação, têm vindo a procrastinar, ainda que a cada ano se esforcem por passar a mensagem de que estão a fazer esse caminho.
Quando, no passado mês de Outubro, Graça Fonseca defendeu os 501,3 milhões de euros de que disporá em 2019 (mais de metade dos quais destinados à RTP), a sucessora de Luís Filipe Castro Mendes no Palácio da Ajuda enfatizou tratar-se do “maior orçamento” para a Cultura desta legislatura em que o PS governou suportado por uma maioria parlamentar de esquerda, sublinhando a aproximação aos valores dos anos anteriores à crise. Na prática, no entanto, esse orçamento pouco vai além da média da última década, sempre à volta dos 0,3% do OE, contrapõe o investigador José Soares Neves, que até 2013 coordenou o Observatório das Actividades Culturais – extinto nesse ano por decisão política do Governo PSD/PP.
É também a exiguidade desse orçamento sempre bastante aquém do almejado 1% que, objectivamente, impõe a diluição das diferenças ideológicas entre a esquerda e a direita quanto às políticas para o sector, contrariando a ideia tradicional de que os partidos da direita se preocupam preferencialmente com as questões da memória e do património enquanto os da esquerda se mostram mais atentos à criação contemporânea.
Quando se trata de desenhar o OE, “o peso enorme que tem o património, com os seus equipamentos e programas longos e pesados do ponto de vista financeiro, dificilmente permite que qualquer orientação político-partidária consiga alterar significativamente as políticas de governo”, salienta ainda ao PÚBLICO o professor do ISCTE, que actualmente dirige a instalação do novo Observatório Português das Actividades Culturais, a lançar brevemente. O caso do orçamento actualmente em vigor é paradigmático: dos 248,5 milhões de euros de que a Cultura dispõe (descontada a factura da RTP), mais de um quinto vai directamente para a Direcção-Geral do Património Cultural.
Secretário de Estado da Cultura entre 1995 e 1997, no primeiro Governo de António Guterres, o musicólogo Rui Vieira Nery concorda que o papel do Estado na Cultura se tornou nos últimos anos “uma área de consenso”, ideológico e também pragmático. “Nos partidos do arco governamental, há uma espécie de consenso tácito em relação à ideia de que os criadores contemporâneos têm uma voragem ilimitada pelos meios públicos”, argumenta; quer se governe à esquerda, quer se governe à direita, a estratégia tende a ser não estimular demasiado as suas reivindicações.
A forma como direita e esquerda lidam com a irrelevância orçamental do sector é, no entanto, uma possível linha de demarcação, entende ironicamente Vasco Pulido Valente: “O ministro da Cultura vale 0,5% do orçamento; não tem importância nenhuma e não decide nada. A direita sabe isso, ou devia saber; a esquerda não sabe”, nota o historiador e cronista do PÚBLICO.
De facto, e mesmo que António Costa e a actual ministra venham tentando adornar as contas do sector, acrescentando-lhes as verbas das autarquias e dos fundos europeus – numa soma que aproximaria o orçamento para a Cultura do ansiado 1% –, é apenas contabilidade criativa: “Os indicadores de referência, a nível europeu e internacional, são o peso da Cultura no OE”, fixa José Neves.
Uma dicotomia "a colapsar"
As políticas governamentais efectivas fazem assim praticamente desaparecer a tradicional dicotomia ideológica entre mais património/mais contemporaneidade. Mas também a agenda política parece confirmar esta diluição entre esquerda e direita. Se não, vejamos alguns casos recentes.
Em Abril de 2018, o PÚBLICO noticiava uma iniciativa do CDS-PP junto de agentes culturais nas áreas das artes do palco, do cinema e dos museus para perceber o que se estava a passar com os concursos de apoios às artes, que no mês anterior tinham motivado uma contestação sem precedentes à política do “Governo das Esquerdas”.
Um ano e meio antes, em Setembro de 2016, o então ministro da Cultura do mesmo "Governo das Esquerdas", Castro Mendes, anunciava o lançamento do programa Revive, abrindo à iniciativa privada a reabilitação, a gestão e a animação turística de monumentos nacionais degradados.
Duas situações, outros tantos exemplos que de algum modo contradizem essa visão tradicional de que para os partidos da direita a intervenção do Estado no sector se deve cingir à defesa do património e da memória enquanto ferramentas de afirmação de uma certa identidade nacional, entregando à esquerda, de bandeja, a bandeira da criação contemporânea. E que contradizem também a ideia de que para a esquerda a coabitação entre cultura e mercado é um tabu.
“[O apoio à criação artística] é uma área muito cultivada pela esquerda, e onde a direita está quase proibida de entrar”, dizia Assunção Cristas para justificar a iniciativa do PP de intervir também nesse terreno, aproveitando a ocasião para criticar “os erros” do Governo de António Costa, acusando-o de viver “mais da fama do que do proveito”.
Tácticas eleitorais à parte, ainda será operatória esta dicotomia direita/esquerda? Vasco Pulido Valente diz que não, que ela “não faz hoje sentido nenhum”. “O património interessa a toda a gente, até por causa do turismo, e toda a gente está também interessada nas artes performativas que temos para oferecer, não só aos estrangeiros como a nós próprios”, refere o historiador.
O sociólogo João Teixeira Lopes, militante do Bloco de Esquerda, diz que essa dicotomia “está a colapsar”, também porque cada vez mais as políticas levadas a cabo por partidos de direita querem usufruir do carisma dos criadores mais consagrados e do prestígio da arte contemporânea – cita, a propósito, a apropriação feita pelo anterior governo da coligação PSD/PP do mediatismo das presenças de Joana Vasconcelos na Bienal de Veneza e no Palácio de Versalhes –, ao mesmo tempo que a vertente da memória e do património “está a ser apropriada pelas políticas de governos progressistas como instrumento de formação de públicos ou até de experimentação de novas metodologias colaborativas”.
É verdade que “há sectores conservadores que continuam com uma grande desconfiança em relação à arte contemporânea e que mantêm a tese de que o Estado só deve intervir em áreas patrimoniais”, acentua Rui Vieira Nery. Mas o musicólogo considera que no actual PS “também não há propriamente um entusiasmo especial pela criação contemporânea”.
Já Pedro Mexia defende que a divisão esquerda/direita no domínio da cultura “não está ainda superada em Portugal”, e realça que ela passa tanto por “questões ideológicas como geracionais”. “Há uma distinção nítida entre a direita conservadora e a direita liberal” neste domínio, diz o poeta e ensaísta, que integra a equipa que prepara o programa para a Cultura do CDS/PP para as próximas eleições legislativas. Se a direita mais conservadora vê “o património como uma espécie de irmão gémeo da História (com maiúscula)”, repositório da tradição, do legado, da identidade nacional, já a direita liberal – "que, na pureza dos princípios, tende a achar que qualquer actividade não estritamente essencial deve ser prosseguida pelo mercado, pelos privados e pelo mecenato" – aceita que, “sobretudo num mercado tão pequeno e insuficiente como o nosso, a intervenção do Estado se mostra incontornável”.
Cosmopolitismo versus populismo
O programador cultural António Pinto Ribeiro desloca esta dicotomia clássica para o tempo da revolução global que hoje vivemos, caracterizado pela “existência de várias esquerdas e de várias direitas, contraditórias no seu seio, a par da fluidez de posições antes consideradas intransponíveis”. E aí observa a emergência de “uma outra oposição radical, mas que veio trazer uma enorme clareza às sociedades contemporâneas: a oposição entre cosmopolitismo e populismo”, que tem tradução nas questões da governação na área da cultura, da educação e das políticas sociais.
O ex-coordenador-geral da Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura realça que o populismo tanto pode expressar-se nas opções da direita como da esquerda reaccionária. Na sua opinião, “o populismo oriundo de uma certa esquerda reduz tudo aos direitos sociais dos artistas”, enquanto o que é protagonizado por uma certa direita “quer que todos os artistas se transformem em empresários individuais". "Ambas as posições", diz Pinto Ribeiro em resposta ao PÚBLICO por email, "traem o que de melhor tem a história dos artistas, que é serem portadores de liberdade de criação e de múltiplos modelos laborais”.
Será interessante ver até que ponto os programas eleitorais dos diversos partidos para as legislativas de Outubro renovarão a linguagem para se aproximar das novas realidades artísticas e culturais. E até que ponto vão manter ainda tradicionais linhas diferenciadoras, como a que no programa de 2015 da coligação PSD/PP defendia “a melhoria do conhecimento da nossa história militar”; ou a promessa, agora do PS, de consumar "o restabelecimento do Ministério da Cultura como primeiro promotor de uma política cultural coerente e sustentada”.
A verdade é que “os programas eleitorais são documentos de intenções com o objectivo de seduzirem os eleitores”, mas poucos os lêem, sublinhava António Pinto Ribeiro na análise comparativa dos programas dos cinco partidos com vocação parlamentar que fez no PÚBLICO antes das últimas legislativas, e em que salientava “o significado flutuante” do conceito de cultura usado por cada uma das forças políticas.
Pedro Mexia diz que “as coisas estão a mudar”, mas, partindo da experiência pessoal de se ver “muitas vezes acusado de activismo de esquerda”, o conselheiro cultural do Presidente da República e consultor de Assunção Cristas para a Cultura adverte que “ainda não mudaram o suficiente”. Refere paradoxos como o de ver “pessoas exigirem uma política patrimonial do Estado sem elas próprias terem uma noção do valor do património” – fazem fogueiras de arquivos e correspondências, colocam documentos históricos à venda no OLX, etc...
Perante uma dicotomia “que deixou de ser frutuosa”, o mais interessante – defende por sua vez o sociólogo e professor da Universidade do Porto João Teixeira Lopes – será perceber se a criação contemporânea, como a preservação da memória, se fará na óptica da democratização da cultura nas suas diferentes dimensões: tornando acessíveis a todos “as obras” da Humanidade, mas, simultaneamente, incentivando políticas activas de formação de públicos” que passem por "não apostar nos mesmos públicos de sempre”.