A Grande Ilusão
Os “bons velhos tempos” são uma ilusão e existem apenas na nossa imaginação. Nas palavras de Franklin Pierce Adams, a principal razão para a existência dos “bons velhos tempos” é uma má memória.
A julgar pelos títulos dos jornais, pelas notícias nas televisões e pelo que circula nas redes sociais, a democracia, a prosperidade, a qualidade de vida e o ambiente estão a deteriorar-se a cada dia que passa. Sindicatos, ordens profissionais, partidos, movimentos cívicos e, especialmente, os media tentam passar, com algum sucesso, a mensagem que tudo vai mal.
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A julgar pelos títulos dos jornais, pelas notícias nas televisões e pelo que circula nas redes sociais, a democracia, a prosperidade, a qualidade de vida e o ambiente estão a deteriorar-se a cada dia que passa. Sindicatos, ordens profissionais, partidos, movimentos cívicos e, especialmente, os media tentam passar, com algum sucesso, a mensagem que tudo vai mal.
O "Brexit", a eleição de Donald Trump e de Bolsonaro, a guerra da Síria, a crise dos refugiados, os "coletes amarelos", o aquecimento global, a poluição dos oceanos e o colapso da Venezuela, entre outros, parecem ser sinais claros de que a civilização está a regredir, que o modelo de uma sociedade democrática e liberal está condenado e que o ambiente do planeta está a ser destruído. Em Portugal, os conflitos nas áreas da saúde, educação, ciência e transportes, entre outros, parecem indicar similares tendências de degradação das nossas condições de vida e das nossas instituições.
É, assim, fácil tornarmo-nos pessimistas, pensarmos que o passado era melhor que o presente, e recordarmos com saudade os “bons velhos tempos”. A realidade, porém, é radicalmente diferente. Os “bons velhos tempos” são uma ilusão e existem apenas na nossa imaginação. Nas palavras de Franklin Pierce Adams, a principal razão para a existência dos “bons velhos tempos” é uma má memória.
Tanto a nível mundial, como a nível nacional, é indiscutível a mudança para melhor de todos os indicadores de qualidade de vida e de bem-estar, no médio e longo prazo. A evolução do número de fatalidades causadas por guerras, doenças e acidentes, da esperança de vida, do nível de educação, da prosperidade dos cidadãos e até da qualidade do ambiente tem sido fortemente positiva nos últimos dois séculos. Esta evolução positiva passa facilmente despercebida face ao dilúvio de notícias negativas com que somos constantemente inundados. Esta é a grande ilusão dos tempos modernos, a de que as coisas estão a piorar.
Steven Pinker argumentou que só usando números e estatísticas será, talvez, possível convencer as pessoas de que o mundo está melhor agora do que alguma vez esteve. Por isso, aqui ficam algumas.
Em menos de dois séculos, a esperança média de vida à nascença para os habitantes do planeta subiu de menos de 30 anos (onde terá estado desde a origem da humanidade) para mais de 71 anos, em 2018. Em Portugal, o valor é de 81 anos. Há dois séculos, mesmo nos países mais desenvolvidos, uma em cada três crianças morria antes dos cinco anos, enquanto agora isso acontece a menos de uma em cada 20. Em Portugal, a mortalidade infantil reduziu-se, só nos últimos 70 anos, de um factor de 50. Noutras frentes, a evolução é igualmente positiva, em alguns casos de uma forma esmagadora.
O número de mortes devidas a guerras em 2016, por cada 100.000 habitantes, foi de 1,2. Para comparação, este valor foi de 300 durante os anos da II Guerra Mundial, e durante as três décadas que se seguiram oscilou entre três e 25, caindo para valores comparáveis aos de hoje apenas na década de 90. A tragédia da guerra na Síria não é, apesar de tudo, comparável nos seus efeitos nefastos às guerras de Angola, Moçambique, Indochina, Índia, China, Sudão e Uganda, que aconteceram durante a segunda metade do século XX.
No que respeita ao rendimento das famílias, a evolução é ainda mais impressionante. O rendimento per capita, ajustado da inflação, cresceu mais de quatro vezes a nível mundial, só nos últimos 70 anos. Em Portugal, o efeito é ainda mais marcado, sendo o crescimento neste período mais do dobro do crescimento médio mundial. Em alguns casos como, por exemplo, a Inglaterra é possível estimar o crescimento nos últimos 200 anos, conduzindo a valores superiores a 15. Estas estimativas pecam por defeito, porque estão compensadas do efeito da inflação mas subestimam necessariamente o efeito da evolução tecnológica. Ninguém poderia comprar um telemóvel, um computador ou uma televisão a cores em 1950, por maior que fosse a sua fortuna.
Muitos outros indicadores deste tipo, dezenas deles, estão amplamente disponíveis e convenientemente compilados em diversas páginas da Internet, entre as quais são de destacar as do site Our World in Data, mantido por Max Roser. Todos os indicadores contam a mesma história. A melhoria das condições de vida da humanidade nos últimos dois séculos é incontroversa e corresponde a uma evolução sem precedentes na história da humanidade.
A divulgação destes indicadores é importante porque contribui para diminuir os efeitos da grande ilusão. Porém, o mais importante é percebermos as razões pelas quais esta impressionante evolução teve lugar. A grande fuga (da miséria), como lhe chamou Angus Deaton, deveu-se, essencialmente, às ideias centrais que caracterizaram o Iluminismo: o primórdio da razão sobre o misticismo, da ciência sobre os cânones religiosos, do conhecimento sobre a ignorância, dos valores humanistas sobre a arbitrariedade dos poderosos, do progresso sobre a estagnação. Esta ideia, de que as sociedades podem e devem progredir, é essencial.
Até à Idade Média, a ideia dominante era que o mundo do futuro seria essencialmente semelhante ao do passado, um conceito que nos parece agora tão estranho como improvável. É esta ideia de progresso que está por trás da evolução positiva de todos os indicadores, a ideia de que a democracia, o conhecimento, a ciência, a tecnologia, a medicina e a engenharia têm o potencial para melhorar significativamente o nosso futuro.
Podemos argumentar que não existem quaisquer garantias de que estes valores, que tão bem serviram a humanidade nos últimos séculos, continuem a ser adequados para suportar o progresso futuro. As consequências negativas que algumas tecnologias inevitavelmente terão têm sido amplamente noticiadas e discutidas: a radicalização política causada, em parte, pelas redes sociais, os extremismos religiosos e o terrorismo, a perda de privacidade imposta pela exploração dos dados, o aquecimento global causado pelas nossas crescentes necessidades de energia, a poluição do planeta resultante do uso crescente de recursos.
Hoje, como no passado, não faltam arautos da desgraça, que vaticinam o esgotamento dos recursos naturais, o desastre ecológico causado pelo excesso de população e até mesmo a possibilidade de holocausto nuclear, biológico ou informático. O facto de existirem problemas não é um dado novo.
Sempre existiram e sempre existirão problemas, como argumenta com clareza e convicção David Deutsch. Mas a capacidade da humanidade para resolver os inevitáveis problemas é, essencialmente, infinita, se devidamente guiada pelos valores do racionalismo, humanismo, ciência e progresso.
Se evitarmos um retrocesso aos valores que perduravam antes da idade da razão, seremos capazes de prolongar a evolução positiva que caracterizou os últimos dois séculos, em prol de uma humanidade mais próspera, saudável, feliz e pacífica. Para tal, é importante não nos deixarmos cair na grande ilusão de que o progresso chegou ao fim e que tudo tem tendência a piorar daqui para a frente. Cegos e atemorizados por essa ilusão não teremos a visão necessária para tomar as decisões indispensáveis para enfrentar os problemas que o futuro sempre trará.
Nota: os argumentos apresentados neste artigo são fortemente baseados nas obras O Novo Iluminismo, de Steven Pinker e O Início do Infinito, de David Deutsch.