Crescer sem criar mais dívida vai ser agora mais difícil

Depois de sete anos de rara correcção do elevado endividamento externo do país, a economia portuguesa enfrenta, com o abrandamento mundial, um desafio ao seu recente modelo de crescimento mais saudável.

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A economia portuguesa tem que lidar com o abrandamento mundial Gary Waters/Getty Images

Com a conjuntura internacional a deteriorar-se, a economia portuguesa corre este ano o risco de, se quiser manter um ritmo de crescimento próximo de 2% ao ano, regressar, oito anos depois, aos défices externos. Um cenário indesejável para um país que tem um dos mais elevados endividamentos da Europa e um exemplo das limitações que Portugal enfrenta para apresentar de forma sustentável ritmos de crescimento elevados.

Nos últimos sete anos, Portugal registou sempre excedentes na sua balança com o exterior. Em 2018, anunciou a semana passada o Banco de Portugal, o saldo da balança corrente e de capital foi mais uma vez positivo, de 0,4% do PIB. Não têm sido valores particularmente elevados – nunca ultrapassaram os 3,2% do PIB, o que fica longe dos défices de mais de 10% atingidos anteriormente -, mas uma sequência tão longa de excedentes externos é um evento extremamente raro na história económica do país nas últimas décadas. De acordo com os dados da Comissão Europeia, entre 1986 e 2018, Portugal apresentou saldos positivos face ao exterior em sete anos, precisamente entre 2012 e 2018. Em todos os outros anos, houve défices.

Estes excedentes são ainda mais significativos se se levar em conta que estão a ser obtidos numa altura em que Portugal está a conseguir crescer acima da média europeia, o que traz a esperança de que finalmente o país possa ter encontrado um padrão de crescimento mais saudável, em que taxas de variação do PIB positivas deixaram de ser incompatíveis com uma situação equilibrada, e mesmo excedentária, da balança com o exterior. No passado, sempre que a economia cresceu mais rapidamente que a média europeia, tal ocorreu por força essencialmente de um contributo muito forte do consumo privado e público e do investimento, resultando na acumulação de um maior endividamento com o exterior.

Agora, as taxas de crescimento moderadamente altas (acima da média europeia, mas abaixo da generalidade dos países europeus com o mesmo nível de rendimento), acontecem num cenário em que a procura interna cresce também ela moderadamente e em que o contributo da procura externa (exportações menos importações) é muito mais favorável.

No entanto, esta série ininterrupta de anos com excedentes face ao exterior pode em 2019 estar em risco de terminar. Em 2018, o saldo positivo de 0,4% do PIB já foi o mais baixo desde 2012 (tinha sido de 1,6% em 2016 e de 1,4% em 2017) e a diminuição registada aconteceu essencialmente devido ao desempenho menos forte que as exportações portuguesas registaram na segunda metade do ano passado, numa conjuntura de abrandamento da economia mundial.

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As expectativas são 2019 não são de melhoria da conjuntura internacional e, por isso, dificilmente o contributo da procura externa para o crescimento económico se tornará mais positivo. Se Portugal conseguir crescer a um ritmo semelhante ao dos últimos anos (2,1% em 2018) terá de fazê-lo com um maior contributo da procura interna.

Para além disso, o efeito positivo que o nível historicamente baixo das taxas de juro tem tido no saldo da balança externa portuguesa (influenciando o valor do pagamento de juros dos agentes económicos portugueses a residentes estrangeiros), apenas deverá ter tendência para se diluir progressivamente, à medida que o Banco Central Europeu retira as suas medidas monetárias expansionistas.

“Se a contribuição da procura externa para o crescimento se continuar a deteriorar em 2019 não será possível manter o mesmo crescimento de 2018 sem que não se verifique um impacto negativo no endividamento externo”, afirma Francesco Franco, professor da Nova SBE. O economista explica que por cada euro que é consumido e investido, 22 e 32 cêntimos respectivamente são importados, o que faz com que, com o saldo tão próximo do equilíbrio e num cenário de redução da procura externa, “um aumento do consumo privado e do investimento privado resulte num aumento das importações que pode levar a um agravamento do endividamento externo”.

Ricardo Cabral, professor na Universidade da Madeira, também considera que manter o ritmo de crescimento sem regressar a défices externos será, na actual conjuntura, “improvável”.

“Um contributo mais negativo das exportações líquidas para o crescimento económico tenderia a resultar numa deterioração das contas externas”, afirma, lembrando ainda que “é sobretudo o efeito preço nos passivos financeiros de Portugal que tende a determinar o sentido da evolução do endividamento face ao exterior”.

Pela positiva, assinala Ricardo Cabral, pode registar-se uma descida dos preços do petróleo, que foi um dos factores a contribuir em 2018 para um resultado menos positivo no saldo comercial. Ainda assim, conclui o economista, “o endividamento externo diminuiu em 2018, mas é provável que volte a aumentar em 2019”.

Endividamento elevado

O problema para Portugal é que, resultado da sequência histórica de défices externos registados pelo país ao longo das décadas apenas parcialmente compensadas pelos excedentes dos últimos anos, o endividamento externo do país é ainda um dos mais altos da Europa.

A Posição de Investimento Internacional (o saldo entre aquilo que o resto do mundo deve ao país e o que o país deve ao resto do mundo) foi, em 2018, de acordo com os dados recentemente publicados pelo Banco de Portugal, de -101,4% do PIB.

Desde 2014, este valor tem vindo a tornar-se menos negativo (no final desse ano era de 118,6%), encontrando-se agora ao nível mais favorável desde o início da crise financeira internacional em 2008. No entanto, entre todos os países da União Europeia, o endividamento líquido da economia portuguesa é ainda o quarto mais elevado, apenas atrás da Irlanda, Chipre e Grécia.

Este endividamento externo elevado é o resultado das dívidas acumuladas por particulares, empresas e Estado. Nestes três sectores tem sido evidente nos últimos anos a tendência de desendividamento. Com a crise, todos eles passaram a sentir mais dificuldades de acesso ao crédito, seja nos bancos seja nos mercados internacionais, e a dívida acumulada foi progressivamente diminuído, mais rapidamente entre os particulares e as empresas, apenas mais recentemente no Estado.

Em 2018, o peso no PIB da dívida de Estado, empresas e particulares voltou a diminuir, mas também houve alguns sinais de inversão da tendência. Em termos absolutos, pela primeira vez desde 2010, o nível de endividamento dos particulares voltou a subir face ao período homólogo do ano anterior. Um fenómeno que está associado ao aumento forte do recurso ao crédito para consumo. Por outro lado, a dívida acumulada com crédito para a compra de casa (a que de longe mais peso tem no total) continua a diminuir, embora a um ritmo cada vez mais lento (-1,6% no final de 2018, quando em 2013 e 2014, caia mais de 4% ao ano).

É este nível de endividamento ainda muito alto que torna o possível regresso de Portugal a défices mais preocupante. “A mudança de um défice externo crónico para um equilíbrio externo foi uma mudança decisiva para Portugal. Este é um feito que tem de ser mantido”, afirma Francesco Franco, salientando que a posição externa muito negativa que o país ainda tem “é o calcanhar de Aquiles” da economia portuguesa. Defendendo que os desequilíbrios internos, como o desemprego, são agora menos preocupantes, o economista defende que “Portugal deveria apontar ao registo de excedentes externos durante bastante tempo para reduzir o endividamento externo líquido”.

Ricardo Cabral também constata que “o nível de dívida externa nunca baixou significativamente e continua demasiado elevado”. Ainda assim, assinala que não se estaria perante um problema que pusesse em causa a esta estabilidade de curto prazo da economia, por dois motivos: “por um lado, uma parte significativa da dívida externa do país é detida pelo sector oficial (empréstimos da UE e do Eurosistema), por outro lado, porque os défices externos serão de pequena dimensão, provavelmente de menos de 1% do PIB em 2019”.

Existe, é claro, sempre a possibilidade de, com a conjuntura externa a não ajudar, manter a procura interna limitada, evitando assim o regresso a défices externos. A consequência disso seria, quase certamente, uma travagem acentuada da economia, que apenas poderia ser evitada com o aumento significativo da produtividade - algo que há muito é desejado, mas ainda não conseguido.