A fábrica de Venezuelas (II)
O mal está feito, e o Brasil pobre vai sofrer bastante com isso. Mas o Estadão acaba de acender um sinal, vermelho: não é inelutável que o Brasil caminhe para uma venezualização, como anunciámos há meses no PÚBLICO. O bom senso parece estar a ganhar terreno.
O jornal O Estado de São Paulo, uma sombra do antigo Estadão, como era carinhosamente apelidado pelas elites paulistas, por sempre ter defendido os interesses dos grandes proprietários ao longo da sua história centenária, teve épocas em que combateu firmemente pela democracia, mesmo que essa democracia fosse, de sua preferência, uma plutocracia. A sua luta contra a censura imposta pelo regime militar saído do golpe de 64 ficou nos anais do jornalismo brasileiro. Páginas e páginas do jornal publicavam poesias, no lugar dos artigos censurados. O contraste era evidente com O Globo e a Folha de São Paulo, os outros dois grandes jornais brasileiros da época, que se dobravam alegremente às instruções dos censores colocados pelos militares no seio mesmo das redações. Só a revista Veja de então, dirigida por Mino Carta, adotou uma atitude de desafio comparável à do Estadão, publicando receitas de cozinha no lugar dos artigos censurados.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O jornal O Estado de São Paulo, uma sombra do antigo Estadão, como era carinhosamente apelidado pelas elites paulistas, por sempre ter defendido os interesses dos grandes proprietários ao longo da sua história centenária, teve épocas em que combateu firmemente pela democracia, mesmo que essa democracia fosse, de sua preferência, uma plutocracia. A sua luta contra a censura imposta pelo regime militar saído do golpe de 64 ficou nos anais do jornalismo brasileiro. Páginas e páginas do jornal publicavam poesias, no lugar dos artigos censurados. O contraste era evidente com O Globo e a Folha de São Paulo, os outros dois grandes jornais brasileiros da época, que se dobravam alegremente às instruções dos censores colocados pelos militares no seio mesmo das redações. Só a revista Veja de então, dirigida por Mino Carta, adotou uma atitude de desafio comparável à do Estadão, publicando receitas de cozinha no lugar dos artigos censurados.
Quem viveu essa época de perto sabe o que essa firmeza representava de alento para quem não alinhava pelas brutalidades do regime que emasculou a democracia brasileira, expulsou do país a sua elite política e intelectual e eliminou fisicamente centenas de opositores, entre os quais vários jornalistas, além de acobertar os escândalos de corrupção que já então assolavam a política e a economia brasileira. No edifício da Marginal do rio Tietê, que alojava a Veja no sétimo andar, nenhum funcionário da empresa, fosse jornalista ou não, entrava no elevador em companhia do censor. E se ele entrasse, os demais saíam, deixando o solitário censor subir até à sua sala, um cubículo ao lado da sala onde crepitavam os telex, antes da entrada da redação.
Muitos refugiados portugueses do salazarismo, entre os quais Miguel Urbano Rodrigues, encontraram a proteção da família Mesquita, antigos proprietários do Estadão, que apesar de inicialmente apoiar o golpe de 64, se distanciaram dele exigindo a volta à democracia. Os anos passaram e o jornal foi perdendo importância diante da Folha de São Paulo, que soube se renovar pelas mãos do recém-falecido Octávio Frias, que contratou a tempo uma geração de estudantes saídos da luta contra a ditadura. Desde a eleição de Inácio Lula da Silva o Estadão foi resvalando para uma oposição cada vez mais nítida ao governo do Partido dos Trabalhadores até apoiar claramente o golpe que depôs a Presidente Dilma Rousseff, e a prisão do candidato do PT à sua sucessão, o mesmo Inácio Lula da Silva, até hoje preso nos calabouços da Polícia Federal em Curitiba. E em seguida apoiar firmemente a candidatura de Jair Bolsonaro, contra a de Fernando Haddad.
Essa caminhada para a extrema-direita acabou conduzindo os editoriais do jornal a excessos dificilmente desculpáveis, como quando apelidou os apoiantes do PT de “tigrados”, nome que se dava aos escravos que, por transportarem às costas as latas com as fezes dos seus proprietários, ficavam manchados pelo que escorria desses recipientes nauseabundos. O jornal se tornou assim uma espécie de arauto do ódio que dividiu a sociedade brasileira, ódio ao PT, que é em boa parte a tradução do ódio de classe, e em última instância do racismo e espírito escravagista ainda vigente em certos setores da burguesia brasileira, a ponto de se comentar em S. Paulo que os leitores compravam o Estadão apenas para ler os editoriais, que satisfaziam os seus instintos reacionários.
Eis que no dia 25 de fevereiro de 2019, num editorial assinado por Regis Savietto Frati, se leem frases como estas: “a esclerose precoce do governo de Jair Bolsonaro parece ter despertado no presidente o demagogo que ele sempre foi e que se encontrava apenas anestesiado em razão de conveniências políticas.” "Foi com esse espírito demagógico, por exemplo, que Bolsonaro anunciou recentemente nas redes sociais uma devassa no Ministério da Educação. 'Daremos início à Lava Jato da Educação!', exclamou o Presidente no Twitter, para compreensível delírio dos bolsonaristas mais animados, que acham que todos os problemas do país se resumem à corrupção." E mais abaixo: “A ninguém, contudo, é dado o direito de surpreender-se. Em 1999, este jornal publicou uma entrevista com Bolsonaro na qual o então deputado federal declarou sua admiração por Hugo Chávez, então recém-eleito Presidente da Venezuela, dizendo que 'gostaria muito que sua filosofia chegasse ao Brasil'. Chávez conquistara o poder denunciando a hegemonia das oligarquias políticas, a degradação dos partidos, a corrupção desenfreada e a falência das instituições – e sobre essas bases ideológicas construiu uma ditadura populista tão sólida que sobreviveu a ele.” Finalizando o editorial: “Bolsonaro e seu entorno parecem ter decidido acelerar sua marcha populista – receita certa para o desastre.”
Tudo leva a crer que estamos então diante de uma inflexão do jornal semelhante à que se verificou em relação ao golpe de 64, no quadro da luta entre as diversas fações que apoiaram a eleição de Bolsonaro, e que hoje se digladiam abertamente, sob o olhar impotente de Bolsonaro: as milícias a que seus filhos estão ligados, as igrejas evangélicas, as oficinas a que se passou a chamar de neoliberais, como o Instituto Millenium, e algumas fações militares que se têm revelado as mais sensatas e moderadas, além, claro, da tropa fandanga dos deputados e senadores, que nos proporcionaram aquele inesquecível espetáculo quando da deposição da Presidente Dilma.
É possível também que a decisão do ministro da Educação, curiosamente de nacionalidade colombiana, de fazer os alunos das escolas cantar o hino nacional, formados diante da bandeira brasileira, terminando a cerimónia, filmada e documentada no ministério, com o slogan da campanha de Bolsonaro – "Brasil acima de tudo. Deus acima de todos" –, tenha alertado algumas mentes mais abertas na redação para os perigos do populismo estridente do ex-capitão Bolsonaro.
Em boa hora. O populismo não leva a mais nada senão à divisão da população, ao acirramento da hostilidade entre grupos ideológicos divergentes que existem em todas as latitudes e que na América Latina é ainda mais profunda, dada a desigualdade de renda reinante, resquícios da colonização e da escravatura. O Brasil tem problemas a resolver, tem de reorientar o aprofundar o crescimento económico, como é inevitável num país jovem, mas tem boas reservas e está longe de uma situação de crise económica que comprometa o fato de ser um dos poucos países no mundo que se pode considerar praticamente autossuficiente no que respeita a satisfação das necessidades básicas da sua população. Isso não deve nem pode ser feito lançando mão de um populismo tacanho e retrógrado e sim apelando a todos os recursos de inteligência de que o país dispõe.
Não é impossível também que, diante de espetáculos como o da ministra dos Direitos Humanos – uma pastora evangélica que afirma ter visto Cristo num pé de mamoeiro – que o bom senso esteja regressando às elites paulistanas, em consonância com o voto de Fernando Henrique Cardoso em Fernando Haddad para Presidente.
A recente constituição de uma comissão de vigilância e combate aos atentados aos direitos humanos, a Comisssão Arns, em homenagem ao antigo cardeal de S. Paulo, Evaristo Arns, uma voz possante contra a ditadura militar dos anos 60, presidida por Paulo Sérgio Pinheiro e integrada por vários juristas ex-ministros de Fernando Henrique Cardoso, sinaliza igualmente um despertar da resistência democrática. A Faculdade de Direito do Largo de S. Francisco, da Universidade de São Paulo, uma das escolas superiores mais antigas do Brasil, é com efeito um reduto de democratas conservadores de grande influência na sociedade brasileira, que o Estado de São Paulo sempre respeitou.
O mal está feito, e o Brasil pobre vai sofrer bastante com isso, como se tem verificado com os massacres de traficantes no Rio de Janeiro por parte de uma polícia que se sabe apoiada pelos setores mais repressivos do governo. Mas o Estadão acaba de acender um sinal, vermelho: não é inelutável que o Brasil caminhe para uma venezualização, como anunciámos há meses no PÚBLICO. O bom senso parece estar a ganhar terreno.
Ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado no Rio de Janeiro. Ex-chefe do escritório da Editora Abril em Paris. Ex-correspondente do Diário de Lisboa em Paris. Ex-gerente do departamento de documentação da Editora Abril em São Paulo. Editor e pesquisador
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico