Contra o apartheid dos parques infantis

Acho­­­­ que está na altura de defender o superior interesse do adulto no parque infantil. Porque compatível com o outro superior, da criança, numa conjugação de superiores nunca antes vista.

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Myles Tan/Unsplash

Há pais que, se percebe, vão ao parque infantil em desespero de causa. Precisam de soltar as crianças, como quem solta os cães, enquanto se deixam cair no banco de jardim e tentam recuperar a consciência. Só querem ficar quietos um bocadinho, invisíveis, em posição fetal, de preferência, e até tremem de medo quando ouvem ao longe o terrível chamamento, caracterizado pelo arrastar da última letra: “papááá” ou “mamããã”.

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Há pais que, se percebe, vão ao parque infantil em desespero de causa. Precisam de soltar as crianças, como quem solta os cães, enquanto se deixam cair no banco de jardim e tentam recuperar a consciência. Só querem ficar quietos um bocadinho, invisíveis, em posição fetal, de preferência, e até tremem de medo quando ouvem ao longe o terrível chamamento, caracterizado pelo arrastar da última letra: “papááá” ou “mamããã”.

Eu já tive os meus momentos de pai fetal no parque infantil, mas por norma consigo estar fora da zona de desespero, embora perfeitamente disponível para ser deixado em paz. No entanto, as solicitações não tardam. É-me pedida ajuda para subir à corda mais difícil, para empurrar o rabo no baloiço, para empurrar o rabo na parede de escalada. Por vezes sinto que a minha única grande tarefa no parque infantil é ser empurrador de rabos.

Às vezes os meus filhos pedem-me que suba aos divertimentos com eles e eu penso “Porque não? Entre isso e empurrar traseiros…” Mas, nessa altura, lembro-me da ameaçadora placa à entrada do parque que diz “Idade: Dos 3 aos 12 anos. Entidade fiscalizadora: ASAE.” E ninguém se quer meter com a ASAE, que deve ser a Gestapo dos parque infantis. Então tento explicar aos catraios: “A sociedade não me deixa subir.” Mas eles fingem que não percebem e estendem-me o braço.

Lá acabo por subir, correndo o risco de a avozinha ao meu lado ser fiscal da ASAE. Há quem faça parkour, eu subo a casinhas de madeira e desço escorregas à sorrelfa. São duas formas distintas de sentir a mesma adrenalina. É óbvio que se estiver um forte trânsito – não confundir com Ford Transit – de crianças, não vou lá para cima dar uma de Gulliver, espezinhar a pequenada. Mas se houver boas condições de circulação, arrisco a transgressão. E já percebi que não sou só eu, já vi vários pais em manobras clandestinas e perigosas no parque, como andar de baloiço ou sobe-e-desce.

Não percebo este apartheid entre adultos e crianças nos parques infantis, quando hordas de psicólogos, pedagogos e paramilitares nos massacram com a ideia de que é fundamental brincarmos com os nossos filhos. Dizem que liberta oxitocina, plasticina e outras “inas” aconchegantes; que estreita laços, estreita a comunicação, estreita a ligação Belém-Trafaria. Suplicam “Não deixe morrer a criança que há dentro de si”, o que me assusta, porque pode querer dizer que estou grávido e ainda por cima de um bebé em estado crítico.

Eu acho que isto dos equipamentos recreativos devia ser ao peso, como no talho. “Este baloiço aguenta até 200 kg de pessoa.” Se o ser humano inventou coisas extraordinárias como o café sem cafeína e as palmilhas Dr. Scholl, tenho a certeza de que também consegue construir escorregas e sobe-e-desces à prova de pais de grande porte.

Acho­­­­ que está na altura de defender o superior interesse do adulto no parque infantil. Porque compatível com o outro superior, da criança, numa conjugação de superiores nunca antes vista. Deviam abrir parques com equipamentos multi-idade, para libertar os pais que, como eu, não podem estar sossegados, nem muito interactivos. São pais nem-nem, que vivem neste purgatório de empurradores profissionais, como bolas descoloridas entre as mãos de uma criança. Apelo, por isso, ao fim deste aperreante regime de segregação etária no parque infantil.

Autor do blogue Gonçalve Jarco.