Seferovic começou a acertar os ponteiros do relógio
Mal-amado em alguns dos clubes que representou, respeitado na selecção, o avançado suíço vive um momento de grande fulgor no Benfica. Generoso, trabalhador, autoconfiante, eis o retrato de um jogador que foi amadurecendo sem nunca baixar os braços.
Há um traço marcante da personalidade e da forma de estar de Haris Seferovic que tem resistido ao passar dos anos e às exigências muitas vezes irracionais que são colocadas sobre os ombros dos avançados. Podem chamar-lhe obediência ao interesse colectivo, lucidez na tomada de decisão ou simplesmente altruísmo. Um atributo que Irene Brechbühl, a primeira professora do internacional suíço, já identificava em 1998, quando vigiava as crianças no recreio da escola Neufeld I: “Ele passava a bola uma e outra vez às meninas”. Ele, que se tornara rapidamente popular entre os colegas pelo talento futebolístico e era bem capaz de resolver os jogos sozinho.
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Há um traço marcante da personalidade e da forma de estar de Haris Seferovic que tem resistido ao passar dos anos e às exigências muitas vezes irracionais que são colocadas sobre os ombros dos avançados. Podem chamar-lhe obediência ao interesse colectivo, lucidez na tomada de decisão ou simplesmente altruísmo. Um atributo que Irene Brechbühl, a primeira professora do internacional suíço, já identificava em 1998, quando vigiava as crianças no recreio da escola Neufeld I: “Ele passava a bola uma e outra vez às meninas”. Ele, que se tornara rapidamente popular entre os colegas pelo talento futebolístico e era bem capaz de resolver os jogos sozinho.
É lá, à pequena cidade de Sursee, no cantão de Lucerna, que Haris regressa sempre que o calendário competitivo permite. É lá que continuam a morar os pais, foi lá que se iniciou no futebol, foi lá que nasceu depois de a família ter imigrado da Bósnia. O apego à localidade com menos de 10.000 habitantes é correspondido com um reconhecimento generalizado pelo contributo que tem dado ao desporto suíço. Um sentimento fortalecido pelo hat-trick que apontou em Novembro, diante da Bélgica, e que saltou imediatamente para a galeria dos momentos ilustres da selecção.
Haris Seferovic representa na perfeição a montanha-russa que é a vida de um desportista profissional. Entre os altos e baixos de uma carreira que já tem o seu quê de trota-mundos, tem aprendido a gerir as desilusões e a relativizar o sucesso, tem sido capaz de combater as probabilidades, de se reerguer quando já parecia irremediavelmente derrubado. O momento que atravessa no Benfica está aí para o provar. De quarta opção no arranque da temporada a titular indiscutível, por entre a crise de resultados do clube, foi uma viagem curta e que ninguém estará em condições de prever quando e onde terminará.
“Sinto-me confiante em qualquer situação. Eu acreditava que poderia vingar e por isso continuei a trabalhar arduamente. Nunca pensei em desistir, mas acho que, nestes casos, todos pensam numa mudança de clube. Só que eu senti que era capaz”, declarou já neste ano ao jornal suíço Basler Zeitung. Foi um pressentimento acertado. Ainda faltam praticamente três meses para o final da temporada e já fez de 2018-19 a sua melhor época de sempre em matéria de golos (24 em 43 jogos até agora, detendo actualmente o estatuto de melhor marcador da Liga), primeiro a jogar em 4x3x3 e ultimamente em 4x4x2 - acabou com 32 golos em 56 jogos, 23 apenas no campeonato, sagrando-se o rei dos marcadores.
A auto-estima do avançado de 26 anos não foi, porém, o único segredo para o manter à tona em tempos de águas agitadas. Mesmo em períodos de contraciclo, contou com o apoio e a aposta de Vladimir Petkovic, seleccionador que lidera os destinos da Suíça desde 2014. E a empatia entre os dois nada tem a ver com o facto de o técnico, à imagem dos pais de Haris, ter nascido em território que é hoje da Bósnia. A justificação para a utilização regular do jogador, seja qual for o momento que atravessa no clube, é esta: “É o resultado das minhas observações. Vejo em cada sessão de treino e em cada jogo quão valioso é para nós”.
Seferovic está longe de ser um virtuoso e muito distante da ideia de uma máquina de fazer golos, mas a enorme capacidade de trabalho, perceptível na forma como reage à perda da bola e à intensidade com que pressiona o portador, transformam-no num activo muito útil. A estes predicados, junta um pé esquerdo de qualidade e uma apetência especial para pedir a bola no espaço, sendo claramente um jogador que se sente mais confortável no ataque à profundidade.
Niko Kovac, de passagem por Portugal para defrontar o Benfica na Champions, elogiou-lhe há meses o carácter e a capacidade de trabalho e detectou-lhe uma evolução significativa desde os tempos em que o orientou no Eintracht Frankfurt. Nesse período na Bundesliga, entre 2014 e 2017, Seferovic foi opção regular no “onze”, ainda que, para um avançado, tenha apresentado uma folha de serviço pouco encorajadora: 19 golos em três épocas.
É justamente essa relação nem sempre bem-sucedida com as balizas que lhe tem valido alguns dissabores, a começar por assobios e críticas vindos das bancadas, como aconteceu no jogo que confirmou a qualificação da Suíça para o Campeonato do Mundo do ano passado. O ponta-de-lança do Benfica teve uma noite pouco feliz no empate (0-0) com a Irlanda do Norte e foi vaiado no momento da substituição. Reagiu com aplausos irónicos e com a simulação de um outro assobio na direcção dos adeptos.
Tivesse o episódio acontecido no início da carreira e a resposta teria sido diferente. Palavra do próprio. “Antigamente, teria sido capaz de atirar qualquer coisa à cabeça das pessoas. Com o tempo, ganhamos mais experiência e cometemos menos erros. Eu costumava discutir mais quando me criticavam”, declarou ao site noticioso suíço Watson.ch, antes do Mundial da Rússia, acrescentando: “Eu tenho a minha expressão facial, mas não sou arrogante”.
Prova disso é a imagem que Irene Brechbühl guarda do pequeno Haris (“sempre muito afável”) e o ambiente que existia no balneário do Eintracht, onde privava de forma muito descontraída com colegas como Carlos Zambrano, Lucas Piazón, Slobodan Medojevic ou Aleksandar Ignjovski. “Brinco muito com os meus companheiros. Acho que é importante termos uma boa atmosfera. Mesmo quando as coisas não correm tão bem, temos de ser capazes de rir e de tirar partido do nosso trabalho”, declarou há quatro anos ao site da Bundesliga.
Um trampolim chamado Mundial sub-17
Foram vários os momentos em que as coisas não correram como previra, desde que começou a tratar a bola por tu nas ruas de Sursee, primeiro na companhia do pai e mais tarde com o irmão e os amigos. Ao lado da escola primária que frequentava, existia um campo de futebol onde jogava a equipa local e Haris decidiu experimentar. “Nós treinávamos lá muitas vezes e um dia ele chegou e perguntou se podia treinar-se”, recordava Beat Koch, primeiro treinador do suíço, em declarações ao Aargauer Zeitung, em 2017. “Corria muito e tinha uma técnica de remate excepcional”.
Convenceu e ficou até 2004, altura em que o Lucerna mostrou interesse e lhe ofereceu um contrato de três anos, que cumpriu integralmente. Seguiu-se um salto maior, rumo a Zurique e ao Grasshopper, emblema histórico no qual não demorou a mostrar serviço. Data a reter no início do percurso: 26 de Abril de 2009, estreia na I Liga suíça, num jogo com o Neuchâtel Xamax. Tinha 17 anos. Data a reter na carreira: 25 de Novembro de 2009, conquista do Mundial sub-17, abrilhantada com um golo na final com a Nigéria e o estatuto de melhor marcador do torneio.
Foi o passaporte para outras paragens. A Fiorentina chegou primeiro que a concorrência e resgatou-o por 2,1 milhões de euros, obrigando-o a interromper os estudos na United School of Sports. Era um novo desafio, uma outra realidade e a adaptação não foi fácil. Em três temporadas em Florença, foi sempre emprestado (Neuchâtel, Lecce e Novara) e, no final do contrato, acabou por ser vendido praticamente pelo mesmo valor da compra aos espanhóis da Real Sociedad.
“Julgo que cada defesa tem o seu estilo, sinceramente. Aqui [na Alemanha], os defesas são geralmente mais fortes e mais rápidos e tens de ser inteligente para levares a melhor”, avaliou Seferovic, quando lhe pediram para comparar a forma como se defende nos diferentes campeonatos por onde passou (e o português, nesta altura, ainda não fazia parte da história).
A verdade é que no País Basco a vida também não lhe correu propriamente de feição. Não só os números de 2013-14 não impressionaram (num total de 40 jogos nas várias frentes apontou quatro golos), como se viu envolvido numa polémica que terá contribuído para acelerar a sua saída, logo na época seguinte. O incidente aconteceu no dia do seu 22.º aniversário, depois de um triunfo da Real Sociedad sobre o Barcelona, por 3-1: uma altercação com a namorada levou mesmo à intervenção das autoridades e Seferovic acabou por ser detido. Passou uma noite na cadeia para posteriormente ser absolvido em tribunal, dez meses mais tarde.
Três épocas, três treinadores
Tardava em afirmar-se ao mais alto nível, mas para quem despontou para o futebol de forma tão precoce, esse só podia ser um obstáculo transitório. Desde pequeno que Haris sabia o que queria e progressivamente foi eliminando as barreiras para lá chegar. “Ele sempre disse que pretendia tornar-se profissional. Lembro-me que os alunos tiveram uma vez de redigir uma composição com o título ‘O que vou estar a fazer dentro de 10 anos?’ e o Haris escreveu futebolista profissional”, contou Béatrice Odoni, professora do avançado no sexto ano de escolaridade.
Atingido o objectivo, precisava de ir mais além. Tinha alcançado um patamar no qual já não era possível replicar aquela tarde em que marcou 16 golos num triunfo por 22-0 sobre o Malters, nas camadas jovens do FC Sursee. Precisava de minutos ao mais alto nível, de tempo suficiente para criar raízes, e encontrou essas condições em Frankfurt. Conheceu três treinadores (Thomas Schaaf, Armin Veh e Niko Kovac) em três temporadas e foi sempre uma opção regular, assinando o seu melhor desempenho logo na época de estreia, com 11 golos em 34 jogos, tendo a equipa terminado em nono lugar a Bundesliga.
Foi, por isso, um Seferovic com mais experiência e outra maturidade o que se mudou para Portugal em 2017. Um avançado mais refinado no seu futebol e mais preparado para as dificuldades. “Se o treinador não me quiser pôr a jogar, essa decisão é dele. Eu só posso tentar mostrar, uma e outra vez, que estou pronto”, assinalou ao Watson.ch, no ano passado, numa altura de seca no Benfica, passada à sombra de Jonas e de Raul Jiménez.
No futebol como na vida, o azar de uns é a oportunidade de outros e a forma como se manteve na luta, mesmo com o aumento da concorrência (nem Castillo, nem Ferreyra conseguiram ultrapassá-lo), permitiu-lhe dar a resposta que o treinador (Rui Vitória primeiro e Bruno Lage agora) esperava. É certo que o actual entusiasmo em seu redor não se compara às manifestações de histeria adolescente que tiveram lugar à porta da casa dos pais, quando ganhou o Mundial sub-17, mas aos poucos tem acumulado créditos juntos dos adeptos.
E por falar nas origens, pouco mudou na vida da família directa de Haris, em Sursee. Apesar do sucesso profissional e da folga financeira que daí advém, o avançado continua a acompanhar à distância a rotina do pai, que nunca deixou o emprego na siderúrgica Swiss Steel, em Emmenbrücke, e da mãe, funcionária da Calida, uma loja de vestuário suíça. Seferovic já tentou convencer o pai a deixar pelo menos o turno da noite, mas não teve êxito: “Se ele se sente bem e se diverte, porque é que não deveria continuar a trabalhar?”, questiona, resignado.
É com ele que conversa quando as coisas correm em contraciclo e foi dele que herdou o temperamento (uma paciência que conhece limites) e a “teimosia” de nunca baixar os braços. E a verdade é que esta forma de estar no futebol já foi reconhecida por diversos treinadores de renome, incluindo a “lenda” alemã Otmar Hitzfeld, que orientou a Suíça durante seis anos. “Seferovic é um avançado que se movimenta muito bem e que tem o físico para jogar contra adversários robustos. O que lhe falta é tempo de jogo”, apontou em 2014. Nesta época, parece estar a ganhar a luta contra o tempo perdido.