Livros pouco livres
Há dias, entrei numa livraria para comprar um romance que tenho muita vontade de ler, A Capital (Dom Quixote), do escritor austríaco Robert Menasse. Recuei quando vi a capa do livro, achei que não iria conviver facilmente com ela, durante o tempo de leitura, e muito menos guardaria um livro que assim se apresenta. Menasse não merece este gesto de rejeição, mas o seu livro também não merece ser assim editado. Em casa, fui à Internet ver como eram as capas do mesmo livro, na edição alemã, inglesa, francesa, italiana e espanhola. Não gostei de todas, mas conviveria com todas pacificamente. Sobretudo, nenhuma delas sofria desse realismo ilustrativo tão em voga desde há bastante tempo na edição em Portugal, que faz um uso imoderado da fotografia.
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Há dias, entrei numa livraria para comprar um romance que tenho muita vontade de ler, A Capital (Dom Quixote), do escritor austríaco Robert Menasse. Recuei quando vi a capa do livro, achei que não iria conviver facilmente com ela, durante o tempo de leitura, e muito menos guardaria um livro que assim se apresenta. Menasse não merece este gesto de rejeição, mas o seu livro também não merece ser assim editado. Em casa, fui à Internet ver como eram as capas do mesmo livro, na edição alemã, inglesa, francesa, italiana e espanhola. Não gostei de todas, mas conviveria com todas pacificamente. Sobretudo, nenhuma delas sofria desse realismo ilustrativo tão em voga desde há bastante tempo na edição em Portugal, que faz um uso imoderado da fotografia.
Robert Menasse é um dos grandes autores austríacos contemporâneos, dispensa certamente que os seus livros sejam embrulhados desta maneira e que sobre a imagem da capa (não numa badana, não numa cinta, não na contracapa) venha aterrar, vinda do Financial Times, uma daquelas frases bem recheadas de adjectivos e advérbios que parecem engendradas por maus publicitários: “Uma sátira deliciosamente cruel — e oportuna — sobre a União Europeia e o significado da Europa nos dias de hoje”. No Financial Times podem ter gostado muito de A Capital, mas tenho a certeza que não é desses lados que Menasse busca aplausos e legitimações. Fácil é perceber que o editor português aplicou a este livro, e a quase todos os que saem das suas oficinas, a bitola gráfica e propagandística que julga adequada a leitores incautos e com pouca autonomia, que é preciso atrair com imagens, cores, sinais e frases de alto ruído, grande visibilidade e fraca elaboração. Seja dito, em boa verdade, que não é um caso excepcional, é até a regra editorial em que vivemos, e é por isso que o tomo aqui como um exemplo banal, já quase naturalizado. Se quisermos procurar as excepções, temos que frequentar algumas franjas do mercado editorial. Por isso é que é um pesadelo entrar hoje nas livrarias portuguesas, sobretudo nas que pertencem às grandes cadeias: é um mundo saturado de cores e volumes de grande porte, prontos para uma guerra comercial completamente insensata (não há livros maiores do que os portugueses: de um romance de 150 páginas, conseguem as editoras fazer um calhamaço com a lombada do Guerra e Paz), com uma paginação e uma mancha que em tempos só eram usadas em livros infantis. Instaurou-se a infantilização dos leitores, a ideia de que quem entra numa livraria precisa, logo à entrada, de tutela e só quando chega às secções do fundo é que começa a ter direito à ousadia de pensar e ganhar autonomia.
Até a edição de poesia, na sua condição muito minoritária e potencialmente ao abrigo destes desvarios, tem sofrido, em certos casos, esta má influência. Os grossíssimos volumes, de capa dura, com que a Assírio & Alvim canoniza as obras completas dos poetas contemporâneos são uma aberração. Se alguém, da editora, pensou que aqueles pedregulhos eram para ser lidos, pensou certamente em leitores instalados a uma mesa (e na vida) que não movem o livro senão para tirá-lo e pô-lo da estante. Ou terá pensado em quem pode e gosta de comprar livros de prestígio (e o preço altíssimo é um factor de prestígio), mas jamais os irá ler? Em quem o editor não pensou, de certeza, foi no leitor profissional, aquele para quem o livro é material de trabalho e de estudo, e precisa que ele seja um instrumento fácil de manipular e eminentemente móvel. Ora, estes monumentos bibliográficos a que me refiro são quase tão imóveis como os que a Remax vende. O argumento de que se trata de “obras completas”, necessariamente volumosas, não explica o aparato. Experimente o leitor a ir a uma boa livraria espanhola (e dou o exemplo espanhol porque aí ainda é fácil encontrar livrarias onde a secção de poesia ocupa um espaço muito generoso), e verificará que não encontra nada de semelhante. Os livros podem ter mais de mil páginas, mas não se parecem com carros de combate e são frequentáveis, sem constrangimentos, em todo o lado. Em suma, não são edições bibelot. Porquê este apelo do kitsch e da vulgaridade pretensamente comercial na edição portuguesa maioritária?