Viagem inspirada pelo mundo vasto dos Dead Combo
O mote era Odeon Hotel, o álbum que editaram no ano passado, mas o concerto da banda de Tó Trips e Pedro Gonçalves foi uma visita, ora exuberante, ora melancólica, sempre inspirada, a um universo musical múltiplo.
A história vai-se fazendo longa, rica e muito bem preenchida e, assim sendo, já os vimos de mil maneiras. Já os vimos em Cem Soldos a balançar uma grande lâmpada de um para o outro enquanto faziam a música soar. Já os vimos olhos nos olhos, sem mais, um batendo o ritmo com o pé, o outro lá no alto a dedilhar com ar sério o contrabaixo. Já os vimos acompanhados de banda completa, jarda eléctrica saltando dos amplificadores, em grandes festivais de Verão, e já os vimos com banda ainda mais completa em jardins de Verão de teatros históricos. Já os vimos debruçados sobre pianos minúsculos a criar música grandiosa, já vimos essa música sugerida nos quadradinhos de tiras de BD e a sua música feita policial do cinema negro americano.
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A história vai-se fazendo longa, rica e muito bem preenchida e, assim sendo, já os vimos de mil maneiras. Já os vimos em Cem Soldos a balançar uma grande lâmpada de um para o outro enquanto faziam a música soar. Já os vimos olhos nos olhos, sem mais, um batendo o ritmo com o pé, o outro lá no alto a dedilhar com ar sério o contrabaixo. Já os vimos acompanhados de banda completa, jarda eléctrica saltando dos amplificadores, em grandes festivais de Verão, e já os vimos com banda ainda mais completa em jardins de Verão de teatros históricos. Já os vimos debruçados sobre pianos minúsculos a criar música grandiosa, já vimos essa música sugerida nos quadradinhos de tiras de BD e a sua música feita policial do cinema negro americano.
A história é longa, álbuns de originais são já seis, ao vivo já são pelo menos um par deles, e até já os vimos do lado oposto ao que nos encontramos nesta noite de quinta-feira, quando passaram duas horas e quinze minutos desde que os músicos retiraram os panos sobre os instrumentos e se ouviram as notas de Deus me mê grana; quando, mais de um par de horas passado, está uma multidão em palco a gingar livremente o trinado da guitarra e o ritmo quebrado da secção rítmica e uma multidão ainda maior na plateia a dançar com sorriso feliz que parece invadir o corpo todo.
Há uns anos vimo-los do outro lado, num concerto especial em que a plateia foi montada nos bastidores do Coliseu de Lisboa. Estávamos em 2014 e eles andavam a apresentar A Bunch of Meninos. Cinco anos depois, cá estão eles no mesmo sítio, nós do outro lado, eles virados para nós, e, vinte e tal canções depois do início, é caso para exclamar: que magnífico bunch of meninos nos saíram os Dead Combo.
Assinalava-se a penúltima data da digressão de Odeon Hotel, o álbum que editaram o ano passado e cujo percurso terminará este sábado, 2 de Março, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães. Porém, neste momento, com o tanto que o antecede no percurso iniciado em 2004, o concerto da banda de Tó Trips e Pedro Gonçalves é tanto desse disco como do vasto mundo que convocam e da música que, ano após ano, foram construindo nele. Ou seja, estão lá, no início do concerto, Mr and Mr Eleven e a The egyptian magician dedicada, diz Tó Trips, “a um grande amigo nosso” – o mágico evocado é Zé Pedro, o guitarrista dos Xutos & Pontapés, e a canção, rock sónico sugerido com fervor, iria cair-lhe muito bem. Estarão lá, concerto a avançar, a feliz melancolia de Dear Mrs Carmen Miranda e a luminosidade exuberante, qual versão rock’n’roll de Carl Stalling, de Theo’s Walking, o tema com que se despedem efusivamente antes do regresso para encore.
Todas as canções acima citadas pertencem a Odeon Hotel e o espírito do álbum foi o mote de todo o concerto. Daí a presença de Mark Lanegan, convidado especial no disco, imponente ao dar a sua voz funda e cavernosa a Fire of love, a uma versão da sua Wedding dress e a I know, I alone, aquela que, com recurso a versos de Fernando Pessoa, inscreveu em Odeon Hotel. Daí, também, termos ouvido Allan Johannes, produtor do disco, acompanhar uma série de canções à guitarra eléctrica, tornado bluesman e garage-rocker de boa colheita.
Odeon Hotel – com o Odeon original, hoje abandonado, a um quarteirão de distância do Coliseu – apresentava a cidade feita espaço onde convivem pessoas de várias idades e origens, ali encenada em imaginário de décadas passadas. Pessoas que, concerto a aproximar-se do fim, veríamos surgir perante nós quando cai o pano no fundo do palco para revelar um andaime por onde passeavam cada uma das personagens que figuravam na capa do álbum. Ora, é precisamente disso que se constrói esta banda, dessa aventura que se procura na descoberta de outras paragens, outras gentes, outros sons, aliada à percepção de que uma origem — a dos Dead Combo é Lisboa, cidade marítima, cidade múltipla — é sempre ponto de partida. Ei-la então: Tó Trips de cartola na cabeça, fato de veludo vermelho no corpo e botas brancas de rocker, e Pedro Gonçalves, fato cinzento elegante e óculos escuros no rosto, a surgir no palco em vários momentos para se ocupar das guitarras e, ocasionalmente, dos teclados — a doença de que sofre neste momento impede-o de participar em todo o concerto.
Vemo-los então reunidos como no início, sentados frente a frente, guitarras nas mãos, a ocuparem aquele lugar só deles, e nosso de uma forma indefinível, que é Esse olhar – “já não tocamos esta há muito tempo… desde Agosto”, apresenta Tó Trips – e Povo que cais descalço. Vemo-los depois chamarem Mark Lanegan e Alain Johannes. Durante todo o tempo, enquanto na tela se vê um letreiro sobre céu cinzento nublado – Odeon Hotel, brilha o néon – ou a imagem do famoso quadro renascentista da azáfama lisboeta, vemos os músicos que acompanham os Dead Combo ajudarem a tornar a música tão múltipla e global quando a cidade retratada há cinco séculos.
Sopram os saxofones um sopro grave (são os de Gui e Gonçalo Prazeres), silva o theremin o seu ambiente sci-fi, ressoam as notas do contrabaixo e rangem as suas cordas sob o arco que as atravessa, chegam teclas para adensar a textura de um par de canções (e tudo isso é responsabilidade de Gonçalo Leonardo e António Quintino) e a máquina mantém-se em movimento sob a batuta desse extraordinário baterista que é Alexandre Frazão, mil ritmos dentro de si, sempre os certos, e um par de solos sem um pingo de aborrecimento, tudo delícia para quem observa.
Duo Dead Combo feito banda múltipla, temos então exuberância e candura, luz e sombra, festa e melancolia. Temos rock’n’roll e jazz, rumba e fado, funaná e western. Rumbero, Mr Eastwood, Lusitânica playboys ou essa Estrela cadente que, extraída das fundações da banda, já parecia conter em si o que os Dead Combo viriam a ser. Ouvimo-las todas no Coliseu. Ouvimo-las com banda completa, ouvimo-los só os dois, olhos nos olhos, e ouvimo-los tocar Lisboa mulata no encore entre os novos e velhos, de ontem e de hoje, de aqui e de ali, que desceram dos andaimes nas suas fatiotas janotas e vestidos glamorosos para dançar palco fora.
Duas horas e quinze minutos depois de os músicos surgirem em palco e retirarem os panos que cobriam os instrumentos, banda, convidados e figurantes despediam-se do público com uma vénia. O público, de pé, aplaudia com vontade e sinceridade. Foi uma celebração, foi um grande concerto, foi uma viagem inspirada por este mundo vasto que os Dead Combo nos continuam a mostrar.