Marlon James: a grande fantasia do mundo

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REUTERS/Neil Hall

Bem-vindos ao universo criado pelo jamaicano Marlon James. Uma África ficcional, civilização geradora de lendas e mitos que começou em Black Leopard, Red Wolf, primeiro volume de uma trilogia já com edição portuguesa confirmada. É o início de uma viagem que pode não ter fim.

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Bem-vindos ao universo criado pelo jamaicano Marlon James. Uma África ficcional, civilização geradora de lendas e mitos que começou em Black Leopard, Red Wolf, primeiro volume de uma trilogia já com edição portuguesa confirmada. É o início de uma viagem que pode não ter fim.

“A criança morreu. Não há nada mais para saber.” Tudo podia acabar aqui, mas começa. São as primeiras palavras da ambiciosa trilogia — protagonizada por um homem chamado Tracker — do jamaicano de 48 anos, vencedor do Booker em 2015 com Breve História de Sete Assassinos (Relógio d’Água, 2016), romance polifónico sobre os homens que mataram Bob Marley. Nas entrevistas que James foi dando sobre o livro, avisara de que vinha aí uma espécie Game of Thrones africano. Repetiu-me essa vontade quando, a propósito da edição portuguesa desse romance, falei com ele por skype e pude ver parte de um escritório que dificilmente caberia no estereótipo do lugar onde um escritor escreve. Quadros, posters, cds, livros, jornais, revistas, muitos objectos a relevar a profusão de contágios da literatura que produz. Da BD ao jazz, os universos fantasiosos de JRR Tolkien ou Angela Carter, as questões de identidade ou raça de Toni Morrison, a experimentação de linguagem que admira em James Joyce, o inglês que aprendeu a aprofundar ao ler Shakespeare, com o pai. Há ainda os desenhos que faz ou as vozes que ouve na rua e nos cafés ruidosos onde gosta de escrever. Sempre som, barulho, muito barulho para chegar à concentração necessária e sair assim do mundo em que está para entrar no semi-delírio criativo com que cria uma multiplicidade de personagens, ritmo frenético, a ilusão de um universo de desvario e êxtase. Se foi assim em Breve História... volta a ser com Black Leopard, Red Wolf, o primeiro volume da tal trilogia africana. Só que agora descolado do realismo e totalmente entregue à fantasia.

Designer gráfico, professor de escrita criativa, escritor, guionista a escrever uma série para a BBC Chanel 4, Marlon James criou na literatura um mundo que é a síntese da sua imensa dispersão de interesses e o tornou um ícone literário — se isso existe. É a figura principal dos suplementos de literatura em língua inglesa neste começo de ano. Em todos, se pode ler a história da sua vida pouco comum. Destaco, para isso, a biografia que saiu na revista New Yorker no final de Janeiro, Why Marlon James Decided to Write an African Game of Thrones. Nele, o escritor fala ainda do exorcismo a que recorreu há quinze anos — quando estava a escrever o primeiro romance — para “tratar” a sua homossexualidade numa Jamaica que a negava e proibia relações sexuais entre homens. Muitos anos depois, confessa que ainda não atravessou essa crise religiosa. E diz que há mais verosimilhança nas fábulas de Esopo do que na maior parte da literatura que pretende ser realista. Ele é um provocador, sim. Desanca na escrita de Philip Roth, mas tem saudades do universo de Norman Mailer, outro branco que fala de problemas de brancos, como James poderia argumentar.

Abro o novo livro ciente da multiplicidade de contágios que o geraram e me fizeram, entretanto, voltar a ouvir o saxofone de Ornette Coleman (The Shape of Jazz to Come) porque esteve tantas vezes em pano de fundo dessa escrita. Revisitei histórias de Os Dublinenenes, de Joyce, tal o modo apaixonado como James falou do livro noutra entrevista. Abri o Dicionário de Lugares Imaginários, de Alberto Manguel (Tinta da China, 2013) porque Black Leopard, Red Wolf começa com um mapa concebido pelo próprio James, de um continente que ele criou e que seria África há mil anos, o que me transportou para o continente americano engendrado por David Foster Wallace em A Piada Infinita (Quetzal, 2012). Mal pegara no livro e já me tinha deixando levar nessa deriva que os livros, e toda a arte, me provocam. Ir atrás de estímulos, de referências.

No princípio do livro uma criança morreu e isso gera o maior dos silêncios. Marlon convoca essa ausência de som, de palavras. Dá um tempo, e entra depois num imprevisível túnel de sentimentos povoado por feiticeiros e vampiros, 640 páginas na edição inglesa, do primeiro volume de uma trilogia com direitos comprados por Hollywood, quando Breve História de Sete Assassinos está a ser adaptada a séria apela HBO (não sem umas palavras azedas de James aos produtores por não concordar com algumas decisões), e uma ou duas marcas: a cada vez maior ligação entre literatura e televisão e a fuga de muitos escritores para universos fantasiosos e especulativos, talvez como escape de um presente que, entretanto, tantos outros autores preferem para explorar numa escrita mais próxima do documentário ou do ensaio jornalístico. A trilogia de Marlon James já foi comprada em Portugal, pela Relógio d’Água e ainda não há data para a publicação do primeiro volume. Entretanto, experimentem seguir pistas e a viagem pode não ter fim. Como em quase todos os bons livros ou toda a arte. Ainda não vi foi The Game of Thrones.