Bem prega o Papa – mas será que a Igreja escuta?
Já vai sendo hora de a Igreja deixar de colocar o seu desejo de poder à frente do seu sentido de missão, e parar de confundir constantemente crime com pecado.
Há uma coisa que a Igreja portuguesa tem de perceber, e que eu tenho muitas dúvidas que já tinha percebido, por mais que o Papa Francisco se esforce: a Igreja não pode, jamais, sobrepor-se às autoridades civis na investigação de crimes de abusos sexuais, nem lhe compete a ela ser a primeira instância dessa investigação.
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Há uma coisa que a Igreja portuguesa tem de perceber, e que eu tenho muitas dúvidas que já tinha percebido, por mais que o Papa Francisco se esforce: a Igreja não pode, jamais, sobrepor-se às autoridades civis na investigação de crimes de abusos sexuais, nem lhe compete a ela ser a primeira instância dessa investigação.
O raciocínio que vemos demasiadas vezes ser feito é este: “Primeiro, nós, Igreja, verificamos se a acusação é credível; e depois, se for credível, chamamos a polícia”. Esse raciocínio é inaceitável. Se é verdade que tal procedimento pode parecer, aos olhos de muitos, um avanço significativo em relação ao que aconteceu num passado recente — quando as investigações nem chegavam a sair da Igreja e os seus resultados eram constantemente silenciados —, é importante explicar a padres e bispos que tal avanço está muito longe de ser suficiente.
Ainda esta semana uma notícia do Observador alertava para uma entrevista que o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, padre Manuel Barbosa, deu ao programa da Antena 1 “E Deus Criou o Mundo”, sobre o tema dos abusos sexuais. Empurrada pelo Papa, a Igreja tem nos últimos tempos dado mostras de uma abertura inédita, e, após duas décadas de escândalos sexuais atrás de escândalos sexuais, o Vaticano parece finalmente decidido a fazer algo mais do que orar pelas vítimas e pedir perdão. Infelizmente, não me parece que esse empurrão papal já se tenha feito sentir neste extremo da Europa, e a entrevista do padre Manuel Barbosa demonstra que há ainda um longuíssimo caminho a percorrer.
É certo que o porta-voz da Conferência Episcopal se esforçou por usar as palavras correctas (“verdade”, “humildade”, “transparência”) em quase todas as intervenções, mas quando confrontado com os números de casos em Portugal e com os procedimentos concretos que foram seguidos em cada um desses casos, a sua resposta não repousou ninguém.
Manuel Barbosa falou, de forma imprecisa, em “dez ou onze casos”, mais “cinco denúncias” que “não foram provadas”, porque “ficaram na investigação prévia”. Ora, seria bom saber exactamente o que a expressão “investigação prévia” significa, juntamente com outra frase muito preocupante: “Quando houver credibilidade e fundamento [nos casos trazidos ao conhecimento da Igreja, eles] devem ser comunicados às autoridades civis”.
A questão óbvia é esta: quem atribui à Igreja o direito de ser ela a avaliar primeiro a “credibilidade e fundamento” nas queixas de abusos sexuais, em vez de esse papel caber, como manda a lei, às autoridades civis? Desde quando devem os tribunais eclesiásticos confundir-se com tribunais criminais, para que só sejam comunicados à polícia aqueles casos em que as instituições da Igreja, do alto da sua sabedoria, considerem credíveis e fundamentados? Será que, se existissem suspeitas de abusos sexuais no Benfica, a polícia só seria chamada a intervir após Luís Filipe Vieira encomendar uma investigação interna e concluir, em reunião da SAD, pela “credibilidade” e “fundamento” das suspeitas?
Esta ideia de que existe um Estado espiritual a viver dentro de um Estado legal, mas que lá no fundo, no fundo, é moralmente superior por serem mais meritórios os seus fins, é uma das piores manifestações daquilo a que o Papa Francisco chamou “clericalismo”. Já vai sendo hora de a Igreja deixar de colocar o seu desejo de poder à frente do seu sentido de missão, e parar de confundir constantemente crime com pecado.