Populismo à italiana
Salvini e Di Maio, com ideologias tão diferentes, arriscam-se a ser o Rómulo e Remo do século XXI.
“O mundo antigo está a morrer mas o novo tarda em nascer”, escreveu Antonio Gramsci no final dos anos 20. O filósofo marxista italiano estava ansioso por saber que destino teria a Revolução Russa de 1917. “E neste interregno nascem os monstros.” Os monstros de Gramsci incluíam os fascistas de Mussolini, cuja luta mortal com os comunistas nas ruas de Turim pelo controlo da vontade popular lhe acabaria por custar a vida. Os nossos monstros não são os monstros de Gramsci. Os nossos não têm ainda forma definida ou nome próprio. Mas já há sinais do que poderão vir a ser.
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“O mundo antigo está a morrer mas o novo tarda em nascer”, escreveu Antonio Gramsci no final dos anos 20. O filósofo marxista italiano estava ansioso por saber que destino teria a Revolução Russa de 1917. “E neste interregno nascem os monstros.” Os monstros de Gramsci incluíam os fascistas de Mussolini, cuja luta mortal com os comunistas nas ruas de Turim pelo controlo da vontade popular lhe acabaria por custar a vida. Os nossos monstros não são os monstros de Gramsci. Os nossos não têm ainda forma definida ou nome próprio. Mas já há sinais do que poderão vir a ser.
Uma chave para se ler estes sinais é a teoria da hegemonia de Gramsci. Uma teoria que parte de uma distinção política fundamental. Por um lado, temos a dominação política direta, mantida através da força militar e da repressão policial. Mas isto não nos deve fazer perder de vista algo ainda mais importante. O controlo da (ou hegemonia sobre a) forma de pensar da população. Como é que se conquista a vontade popular, não pela força, mas pelo controlo hegemónico da opinião pública? O primeiro passo a dar, segundo Gramsci, é moldar o debate político. Isto requer a colocação de pessoal político nas escolas, universidades, jornais, fundações. A função destes quadros é espalhar a palavra. Só assim se forja um novo senso comum. A política pura e dura, eleições incluídas, fica para depois.
A teoria da hegemonia fez escola no Ocidente a partir dos anos 60. Inspirou quer a nova esquerda, em superar as limitações do materialismo histórico, quer a nova direita francesa dos anos 70, que procurava assim emular e anular a estratégia do seu adversário. A ideia de hegemonia pode ser encontrada também por detrás de projetos políticos. Como explicar o sucesso de Berlusconi senão pela sua agenda (gramsciana) de controlo da opinião pública? Sem um programa ideológico coerente, Berlusconi fez disso a sua imagem de marca: controlando televisão e imprensa, levou os italianos a acreditarem que o tempo da ideologia tinha acabado. À frente da Força Itália, venceu quatro eleições legislativas. Até que a crise financeira de 2008 o derrotou. Com o tecnocrata Mario Monti, os italianos sentiram o seu país vergado sob o peso da mão longa de Merkel e do mundo financeiro. Com Renzi, que acaba por destruir o próprio partido numa luta fratricida entre gerações, perdem a esperança do centro poder governar. É na sequência desta sucessão de becos sem saída que as legislativas do ano passado têm lugar. É também aqui que surge o primeiro sinal do que está para vir.
O atual governo italiano assenta numa solução política inédita. Um governo de coligação entre os dois extremos ideológicos. Uma coligação bicéfala, com dois vice-primeiro ministros. A dar a cara pelo movimento 5 Estrelas, Luigi de Maio; pela Liga Norte, Matteo Salvini. Uma coligação unida pela forma de fazer política e pela posição anti-sistema, seja o “sistema” Bruxelas, o FMI, ou o capitalismo de casino. Mas o novo monstro bicéfalo não tem ainda uma identidade formada. A rejeição da globalização económica em nome de uma solidariedade de classe aparece combinada com uma mensagem nacionalista e xenófoba. Reza a lenda que foi Rómulo a fundar Roma após matar Remo, o seu irmão gémeo. Salvini e Di Maio, com ideologias tão diferentes, arriscam-se a ser o Rómulo e Remo do século XXI.
Apesar desta incoerência programática, o novo monstro começa a ganhar forma. Assume uma forma distintamente populista de fazer política. Responsável pelas pastas da economia e segurança social, Di Maio reuniu com os “coletes amarelos” na vizinha França, símbolo da resistência anónima contra o grande capital, as instituições europeias e o neo-liberalismo. Objectivo: afrontar Macron, exemplo acabado da elite económico-financeira. Responsável pela pasta da Administração Interna, Salvini tem-se mostrado mais preocupado com a imigração do que com a Máfia. O combate à criminalidade passa por expurgar o “imigrante” traficante de droga, violento e incapaz de se integrar na sociedade italiana. Para Di Maio e Salvini, portanto, a solução dos problemas que a Itália defronta hoje em dia é simples. Erradicar o mal pela raiz, depurando a nação italiana dos elementos estranhos que a deixa mais fraca e desfigurada, sejam estes as elites políticas ou os imigrantes ilegais. A promessa de um novo e revigorado povo italiano, a renascer das cinzas do antigo, é uma imagem poderosa. Uma imagem eminentemente populista.
À medida que a forma do novo monstro se começa a definir, faz-se luz sobre o que o tem permitido crescer. Esta lógica de ressentimento contra elites e imigrantes parece beneficiar de uma “emigração interior” por parte de muitos italianos. No século XX, esta emigração interior era apanágio de ditaduras que limitavam a participação cívica e política. Hoje em dia, com o aumento generalizado do nível de vida das populações, é um traço comum às democracias. Sem surpresa, também em Itália muitos têm optado por “emigrar” para a sua vida pessoal. “Exilados” no seu mundo interior, focam-se em si próprios e nos que lhes são próximos. O resultado é conhecido, lá como cá. A participação política e o protesto são coisas de uns poucos, quase sempre os mesmos, quando não profissionais de carreira. Esta alienação é pasto fértil para que o novo monstro cresça e se torne hegemónico.
Impedir a hegemonia do novo monstro passa, pois, por lutar contra a alienação cívica. Felizmente, a Itália não é só Salvini ou Di Maio. É também a Itália de Maquiavel e do republicanismo cívico. Para os florentinos, a liberdade não se reduzia a serem livres da interferência externa ou serem livres de concretizar os seus planos de vida. O mais importante é estarem livres da dominação de um qualquer rei ou senhor. Liberdade era senhores do seu próprio destino. Um destino que se definia através da participação no governo da sua cidade. Um destino que se protegia com garantias constitucionais contra o exercício arbitrário do poder. Mas como convencer hoje as pessoas em Florença ou Lisboa que o seu próximo destino de férias é menos importante do que o destino do país? Ou que, num tempo que a política é dominada por tecnocratas arrogantes ou demagogos com uma relação difícil com a verdade, é necessário devotarem mais tempo à coisa pública? Perguntas difíceis de resposta incerta.
Os monstros de Gramsci acabaram por lhe custar a vida e marcaram o século XX de forma indelével. Durante décadas, acreditámos que não voltariam. Enganámo-nos. Os monstros voltaram. E tudo indica que estão para ficar.