Um dia no Ramiro

A cervejaria Ramiro também é nome de livro e acaba de ser lançada a obra homónima dedicada a esta casa lisboeta. Uma história contada por Alexandra Prado Coelho e fotografada por Paulo Barata. Publicamos aqui um excerto, que nos leva aos bastidores agitados da célebre cervejaria, fundada há 62 anos.

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Passa pouco das dez da manhã e as portas da Cervejaria Ramiro já estão abertas. Não é ainda hora de receber clientes, mas é por esta altura, todos os dias, que chegam os fornecedores.

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Passa pouco das dez da manhã e as portas da Cervejaria Ramiro já estão abertas. Não é ainda hora de receber clientes, mas é por esta altura, todos os dias, que chegam os fornecedores.

Os veículos de transporte cheios de mariscos estão à procura de lugar para poderem descarregar, os condutores envolvidos nas eternas conversações com a polícia, que os avisa que ali não podem ficar muito tempo. O trabalho tem que ser rápido. As caixas começam a ser levadas para dentro da cervejaria. Atrás do balcão está já a Sandra, a tratar dos mariscos que têm que ser cozidos e a preparar o almoço do pessoal.

Cabe a Fábio ajudar os homens a descarregarem as caixas cheias de santolas e lavagantes vivos. O camarão de Espinho já chegou e está a ser cozido em grandes panelas – aliás, aqui nunca se pára de cozer marisco. As empregadas da limpeza, armadas de baldes e esfregonas, esfregam chão, paredes, cozinha, ao mesmo tempo que as encomendas vão chegando e que entra um ou outro representante de alguma marca que vem perguntar se estão interessados num determinado produto. Paciente, Rui diz que têm que falar com o patrão, que de momento não está.

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As lagostas são tiradas das caixas e mergulham nos aquários da montra, agitando-se e nadando sem direcção certa. Outras caixas trazem navalheiras e bruxas. Descemos as escadas atrás de Fábio para ver os aquários da pequena sala no andar de baixo, onde há uma balança para pesar as caixas. Aí os lavagantes têm um espaço próprio porque se, por acaso, se rompe um dos elásticos que lhes prendem as tenazes, eles atacam os outros mariscos. Também os lagostins, que atingem preços mais elevados, são mantidos num aquário à parte, para evitar prejuízos. Já as amêijoas e as ostras, que vêm depuradas, não chegam a ir para os aquários.

Voltamos a subir as escadas. Por momentos, tudo parece mais calmo, mas eis que chega a carne para os pregos. Lá em cima, Ana e a mãe, Maruja, tratam da contabilidade e vêem se está tudo certo com os fornecedores. Parte do pessoal ainda vai almoçar e daqui a pouco as portas abrem para os primeiros clientes do almoço. Está tudo a postos. Quanto a nós, voltamos mais tarde para ver o serviço da noite.

O relógio marca as 20h10. Chegamos à cozinha do andar de cima. Mário Cunha desculpa-se por antecipação – “vocês não se ofendam, a gente aqui fala mal” – diz, enquanto passa com uma santola na mão e, quase ao mesmo tempo, coloca mais uma mão-cheia de amêijoas no prato da balança.

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Tudo o que são pratos quentes é o sr. Cunha que trata, explicam-nos. Agora é alguém que passa com água fria para parar a cozedura de uma lagosta. Na grelha, cobertos com sal grosso, estão os camarões-tigre, o tom cor-de-rosa a contrastar com o cinzento da chapa. Ao nosso lado, o ajudante do sr. Cunha corta uma enorme lagosta.

Cunha vai pincelando os camarões al ajillo que estão dentro de pequenas frigideiras. Um dos empregados da sala aparece à porta e pede mais al ajillo. A cozinha enche-se com o barulho de pratos a chocar uns contra os outros enquanto são lavados. Clientes passam pela porta da cozinha e cumprimentam com familiaridade o sr. Cunha, que brinca com eles, bem-disposto.

Na grande torradeira entram constantemente pães cortados ao meio para torrar. Cunha volta para perto dos camarões-tigre – é tempo de os virar na chapa. Um rapaz vai buscar percebes. Sai uma bandeja de camarões-tigre. Há seis frigideiras de camarões al ajillo prontas a sair. No final fica um aroma do azeite e alho, diz Cunha.

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O alho picadinho enche até cima uma taça de metal, suficiente para muitas doses de al ajillo que hão-de sair desta cozinha ao longo da noite. Agora sai mais uma dose de camarões. De uma panela grande pousada sobre o lume espreitam as antenas de uma lagosta que, de vez em quando, ainda dá um sinal de vida. As chamas não param nas cinco bocas de lume onde estão permanentemente a cozinhar os al ajillo. Alinhadas em frente estão mais cinco frigideiras à espera de vez, já com o azeite, o alho, a malagueta. O rapaz continua a tirar percebes às mãos-cheias.

Um empregado espreita pela janela e pede um al ajillo “bem picante” para a mesa 6. Camarão mais pequeno, dentro de um tacho de cobre, passa por baixo de água. Por outra janela vai entrando a louça suja. Outro funcionário separa o vasilhame, deita fora os restos e passa os pratos ao seguinte que mete uns na máquina de lavar e lava os outros à mão. Novamente o barulho de louça a bater uma na outra sobrepõe-se a todos os demais.

Há uma energia concentrada na cozinha. Cada um sabe o que tem que fazer e os gestos são repetidos noite após noite, numa coreografia que, de tanto ser ensaiada, já acontece naturalmente. Parece inacreditável mas ninguém choca com ninguém e as panelas e frigideiras que continuamente passam de um lado para o outro desafiam as leis da gravidade mas nunca caem.

Cunha tira percebes de uma panela e lança lá para dentro camarão. Durante um bocado ninguém fala, cada um atento à sua tarefa. Cunha parece fazer três ou quatro coisas ao mesmo tempo. Na balança pesa três doses de camarão descascado para o al ajillo, dá uma volta rápida em redor de si mesmo e lança as três doses em três frigideiras e logo de seguida tira a lagosta de dentro da panela e passa-a ao ajudante para ele a cortar.

João, o rapaz que está responsável pelo pão, ainda não parou de o cortar, virá-lo na torradeira e pôr-lhe manteiga. Saem quentinhos para as mesas, non stop. Um ajudante raspa o sal da chapa. “Saem duas sem molho”, lança um empregado da janela. “Bem, hoje parece que estamos num hospital”, brinca Cunha.

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Nova panela ao lume – agora são as amêijoas que voam para o interior. Há papelinhos brancos com os pedidos alinhados ao pé da torradeira. Com a ajuda de uma escumadeira, os camarões são retirados da panela. E uma lagosta.

O ritmo parece acelerar. Surge o primeiro pedido de seis pregos. Carne na chapa, João corta pães a grande velocidade, põe manteiga, empilha-os e, com firmeza, corta-os ao meio. Há outro pedido de pregos que está a demorar mais alguns minutos e um dos empregados de mesa entra na cozinha, bate a carne, tempera-a com alho e lança-a para a chapa. Quem pode vai dando uma ajuda. “Estás a fazer isso para ti?”, pergunta-lhe outro. “Não, é para ti”, responde o primeiro, irónico.

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João, sem se distrair do pão que está na torradeira, toca uma campainha para pedir à cozinha de baixo que mande mais percebes para cima. “Pessoal, como é?”, cumprimenta um cliente que passa pela porta. Chegam mais duas santolas que são pesadas, Cunha agarra-as com uma mão só, avalia o peso e, zás, para dentro da panela de água a ferver. Os animais abrem as antenas, mas o cozinheiro não tem estados de alma.

Mais uma leva de camarão-tigre que se alinha muito arrumadinho em cima da chapa, a carne inicialmente branca a tornar-se rosada com o calor. Agora são bruxinhas vivas que saltam para o prato da balança. Ninguém para e a noite ainda é uma criança. É tempo de irmos espreitar a cozinha do rés-do-chão.

Aberta para a sala mas com o formato de corredor e com um grande número de pessoas a trabalhar, é preciso alguma perícia para atravessar esta cozinha e encontrar um cantinho do qual se possa ver o movimento sem atrapalhar o serviço.

Logo à entrada está o Armando a cortar presunto em fatias fininhas – uma tarefa que só é feita na cozinha de baixo, com os pratinhos a seguirem depois pelo elevador para cima. Aqui há também uma pessoa só a cortar santolas. O melhor lugar para observar tudo é ao fundo, junto do rapaz que corta o pão. Uma máquina na parede vai cuspindo os pedidos de cada mesa em forma de pequenos papéis brancos que ele coloca em cima dos pratos, gritando de vez em quando alguma coisa.

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Os outros não levantam os olhos do que estão a fazer, mas ouvem-no sempre e o serviço continua sem que nada falhe. Ali perto está também a máquina de lavar a louça e, ao longo do balcão, virados para a sala – sempre cheia – alinham-se sete homens cada um a fazer uma coisa diferente: cortar a carne para os pregos, cortar as santolas, esvaziar os pratos, pô-los na máquina, finalizar os outros pratos que vão saindo dos fogões e passá-los aos empregados da sala.

“É sempre a abrir!”, diz um deles. As chamas altas lambem as panelas e as frigideiras ao lume. Gritam-se mais pedidos. De repente quase ensurdecemos com o barulho dos pratos já lavados a serem tirados da máquina. O pão torrado continua a sair como se não houvesse amanhã e o rapaz que o vigia está constantemente a ver se já está no ponto certo e a cortar mais para encher novamente a torradeira.

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Uma santola segue de elevador para o andar de cima. A seguir é uma enorme lagosta viva que apanha o elevador. E, logo depois, um prato de ostras. Lá ao fundo, na entrada da cozinha, Armando começa a desbastar nova perna de presunto. Faltam 15 minutos para as 10 da noite e a fila à porta não dá sinais de diminuir. O sistema chama, em inglês ou em português, o número seguinte, e as pessoas continuam a entrar até, pelas duas da manhã, as portas fecharem. É mais um dia normal na Cervejaria Ramiro.