Os dois lados do espelho
Os juízes querem descobrir se há algum problema do seu lado. E vão fazê-lo de forma decidida, séria e responsável, sem receios nem complexos.
Vamos então falar de violência doméstica e tribunais. Mas a ver se nos entendemos já de início, para isto não acabar lido ao contrário. Não estou aqui para sacudir a água do capote e dizer que está tudo bem do lado dos juízes, nem que as indignações colectivas recentes obedecem a uma agenda para deslegitimar os tribunais. Mas também não me peçam para aceitar que os juízes são uns mentecaptos, insensatos, misóginos e machistas. Se considerarmos o retrato-robot de quem entra na carreira judicial – mulher, 30 anos, solteira – e as 65% de juízas mulheres (Quem são os futuros magistrados, CEJ, 2018 e PORDATA, dados de 2017); se considerarmos que os juízes são pessoas instruídas, razoáveis, educadas num quadro de valores ajustado aos nossos tempos e formadas numa escola que ensina cultura, respeito e tolerância, vemos logo que esse preconceito é ridículo. O certo é que existe um desfasamento entre aquilo que os tribunais fazem quando tratam da violência doméstica, e aquilo que a sociedade pensa que fazem ou deviam fazer. Portanto, o meu ponto de partida é este: há um problema? Há! Alguém sério sabe verdadeiramente onde está o problema? Não!
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Vamos então falar de violência doméstica e tribunais. Mas a ver se nos entendemos já de início, para isto não acabar lido ao contrário. Não estou aqui para sacudir a água do capote e dizer que está tudo bem do lado dos juízes, nem que as indignações colectivas recentes obedecem a uma agenda para deslegitimar os tribunais. Mas também não me peçam para aceitar que os juízes são uns mentecaptos, insensatos, misóginos e machistas. Se considerarmos o retrato-robot de quem entra na carreira judicial – mulher, 30 anos, solteira – e as 65% de juízas mulheres (Quem são os futuros magistrados, CEJ, 2018 e PORDATA, dados de 2017); se considerarmos que os juízes são pessoas instruídas, razoáveis, educadas num quadro de valores ajustado aos nossos tempos e formadas numa escola que ensina cultura, respeito e tolerância, vemos logo que esse preconceito é ridículo. O certo é que existe um desfasamento entre aquilo que os tribunais fazem quando tratam da violência doméstica, e aquilo que a sociedade pensa que fazem ou deviam fazer. Portanto, o meu ponto de partida é este: há um problema? Há! Alguém sério sabe verdadeiramente onde está o problema? Não!
É verdade que Portugal tem números alarmantes na violência doméstica – que é também predominantemente violência de género contra mulheres. Em 2017 foram apresentadas 26.713 participações às autoridades, por 79% de vítimas mulheres, contra 83,8% de agressores homens, que acabaram em 1457 condenações em tribunal (Prevenção e combate à violência contra mulheres e à violência doméstica, 2018, CIG). Porém, sem escamotear a dimensão dramática desta realidade, ela muda de figura quando a vemos à escala da UE. Na avaliação geral do nível de violência contra mulheres, que combina diversos indicadores, Portugal surge classificado muito favoravelmente, no 26.º lugar, entre os 29 países da UE (Índex 2017, Instituto Europeu para a Igualdade de Género). Nos índices de violência física, sexual, psicológica e de perseguição, sofridas por mulheres da UE nos últimos 15 anos, o nosso pais posiciona-se no escalão mais baixo em todos os tipos de violência, em comparação com os índices mais elevados que se observam, sobretudo na Europa central e na Escandinávia (Violence against women in EU – wide survey, Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais).
É também verdade que algumas decisões judiciais suscitaram perplexidades e foram objecto de críticas violentas. Nem sempre foram justas e informadas, mas adiante porque o que delas releva é que, no palco da justiça mediático-dramática, o guião está escrito: os tribunais protegem os homens agressores, com sentenças brandas, e discriminam as vítimas mulheres, com linguagem inapropriada e desrespeitadora dos valores constitucionais.
Isto é o que se vê do lado de lá do espelho. Uma imagem distorcida da realidade, que não corresponde, nem de perto nem de longe, à verdadeira face dos juízes. Mas uma imagem que preocupa e deve levar a agir, porque a confiança social é um valor precário. Por isso, os juízes querem agora descobrir o que mostra o lado de cá do espelho. Se há algum problema do seu lado. E vão fazê-lo de forma decidida, séria e responsável, sem receios nem complexos.
Foi constituído um grupo de trabalho para analisar as decisões judiciais proferidas em casos de violência doméstica, numa perspectiva comparada com o que se faz noutros países. Vai fazer-se um levantamento das leis e tratados internacionais, para ver se há ajustamentos que devam ser introduzidos na legislação. Está em concepção um projecto, proposto pelos juízes, que deverá envolver a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e uma Universidade, para se fazer um estudo de avaliação das decisões judiciais que permita tirar conclusões, com valor científico. O XII Congresso dos Juízes, em 2020, será dedicado à reflexão sobre esta temática.
Vamos testar estas interrogações: há discriminação de género nas decisões dos tribunais portugueses? A resposta judicial varia em função do género do/a julgador/a? As sentenças nos casos de violência doméstica são demasiado lenientes? Veremos o que nos vão dizer as respostas. Se há e onde estão os aspectos a melhorar: nas práticas, na lei, na formação. Veremos. O que tiver se ser corrigido, corrige-se.