O treinador-gestor e os activos tóxicos
Pouco importa, para o caso, se nos deixamos convencer pelas explicações de Maurizio Sarri acerca do desentendimento com Kepa na final da Taça da Liga inglesa. O episódio caricato (e preocupante?) que aconteceu no relvado de Wembley, já na contagem decrescente para o desempate por penáltis, é a mola impulsionadora perfeita para uma reflexão sobre a relação entre treinador e jogador. Uma relação que vai muito para lá dos ditames simplistas da hierarquia.
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Pouco importa, para o caso, se nos deixamos convencer pelas explicações de Maurizio Sarri acerca do desentendimento com Kepa na final da Taça da Liga inglesa. O episódio caricato (e preocupante?) que aconteceu no relvado de Wembley, já na contagem decrescente para o desempate por penáltis, é a mola impulsionadora perfeita para uma reflexão sobre a relação entre treinador e jogador. Uma relação que vai muito para lá dos ditames simplistas da hierarquia.
A confrangedora novela Kepa (que fez mais pela divulgação do nome do jovem guarda-redes espanhol do que os 80 milhões de euros que custou ao Chelsea) foi-nos vendida como um problema de comunicação, uma leitura que ajuda a fazer a ponte para os estudos que se debruçam sobre os conflitos entre mentor e atleta. Seja qual for a modalidade, seja qual for o background ou a faixa etária, o potencial para o desentendimento é uma sombra permanente a pairar sobre um campo de treinos.
Com esse risco em mente, e tomando por boa a literatura existente e o feedback de vários protagonistas, há três vectores que ajudam a minimizá-lo: manter a distância devida (estabelecer limites no relacionamento), o compromisso com um objectivo comum, e uma via desimpedida para o diálogo. Estas são pedras basilares de uma relação produtiva, que podem ser salvaguardadas com recurso a diferentes estratégias, que vão desde a auto-regulação até ao uso de uma abordagem equilibrada (no caso do treinador, por exemplo, ponderar o peso da crítica rigorosa e do elogio genuíno).
Um estudo conduzido por um grupo de investigadores da School of Sport, Exercise and Health Sciences, da Universidade de Loughborough, no Reino Unido, e publicado em Julho de 2018, indica que são os atletas que têm mais dificuldades em abordar o treinador em caso de insatisfação ou de dúvida e que há uma tendência natural para evitar a confrontação a todo o custo.
“Enquanto a experiência e a posição do treinador o tornam num solucionista de conflitos em tempos difíceis, é a vontade de ambos, treinador e atleta, resolverem o problema e a sua habilidade para comunicar que pode ter ramificações importantes para minimizar conflitos negativos”, pode ler-se no trabalho intitulado Managing conflict in coach-athlete relationships.
No cerne da questão está, muitas vezes, a tendência do atleta para se concentrar na árvore e descurar a floresta. Essa incapacidade para ver mais além, para abarcar o todo, gera desvios interpretativos e tensões acumuladas. E é precisamente por ter uma exacta noção da sensibilidade do tema que Pep Guardiola elege como requisito fundamental nos futebolistas que contrata a adesão a uma “cultura de equipa”. Mais do que um livro de regras internas ou um espartilho disciplinar, mais do que chavões verbais ou rituais simbióticos, o que importa é que todos os membros do plantel adoptem comportamentos que conduzam a equipa até um objectivo global, que, no limite, acabará por ilustrar a verdadeira identidade do grupo.
Há circunstâncias, é certo, em que o conflito acaba por potenciar o rendimento do atleta, que redobra esforços no sentido de dar uma bofetada de luva branca ao treinador. Mas essa não é, não pode ser, a regra. Muito menos quando as divergências, na sua versão mais rude, são atiradas para o colo dos adeptos, como aconteceu tantas vezes ao longo da história.
Exemplos? A troca de agressões entre o treinador Delio Rossi e o médio sérvio Adem Ljajic, ambos da Fiorentina, logo após a substituição do jogador, em 2012; a fúria de Arjen Robben no Bayern Munique quando Carlo Ancelotti o retirou de campo, em 2017, algo que aconteceu também com Zlatan Ibrahimovic (AC Milan), Carlos Tévez (Manchester City), ou, mais recentemente, com Manuel Fernandes, que deixou o treinador do Lokomotiv de mão estendida em Moscovo, na presente edição da Champions. E, claro, aquela discussão burlesca e interminável entre Mido, estrela do Egipto, e o seu seleccionador, Hassan Shehata, nas meias-finais do CAN de 2006.
Não raramente, este é o preço a pagar por contar com uma estrela, tantas vezes de cariz indomável, que resolve problemas em campo e os cria fora dele. Mas essa tolerância presa pelos arames dos resultados ou das receitas é um soco no estômago à espera de acontecer. Damon Stoudamire, jogador da NBA durante 15 épocas e agora treinador de basquetebol na University of the Pacific, na Califórnia, sabe do que fala: “Às vezes somos complacentes durante o tempo necessário para descobrirmos como vamos resolver o nosso problema de produção. Claro que se dermos tempo suficiente a um jogador tóxico, ele eventualmente virará toda a equipa contra nós”.