Anticiganismo – a sina branca
De nada adiantam as ‘medidas institucionais’ se não se encarar a verdadeira natureza do racismo e do anticiganismo.
Artigos recentes nos media parecem dar uma nova visibilidade e protagonismo às comunidades ciganas. Contudo, as narrativas instituídas silenciam-nos. A escolha do que falar, quem, como e quando e – acima de tudo – do que calar não é ainda um poder nosso. Vence a narrativa institucional e acrítica do racismo moral (do ‘indivíduo preconceituoso’ e ‘ignorâncias’), da ‘inclusão’, do ‘empreendedorismo social’, da subestimação da violência racista e o paternalismo que nos quer dizer como devemos lutar contra o racismo.
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Artigos recentes nos media parecem dar uma nova visibilidade e protagonismo às comunidades ciganas. Contudo, as narrativas instituídas silenciam-nos. A escolha do que falar, quem, como e quando e – acima de tudo – do que calar não é ainda um poder nosso. Vence a narrativa institucional e acrítica do racismo moral (do ‘indivíduo preconceituoso’ e ‘ignorâncias’), da ‘inclusão’, do ‘empreendedorismo social’, da subestimação da violência racista e o paternalismo que nos quer dizer como devemos lutar contra o racismo.
De nada adiantam as ‘medidas institucionais’ se recusarem entender e encarar a verdadeira natureza do racismo e do anticiganismo.
O racismo é violento, sistémico, estrutural e institucional. Está na formação dos Estados e das nações. Leis foram decretadas: trabalhos forçados, escravatura, expulsões, perseguições, empobrecimentos sistemáticos, segregação e até genocídios étnicos. E Estado e "livre mercado" criaram estruturas racistas e autónomas que se auto-reproduzem.
Mentiras, estereótipos e propagandas racistas foram e ainda são implementadas legal, institucional e publicamente. Insistem nas "histórias de sucesso" para reproduzir a mentira da meritocracia, de que é tudo uma questão de "querer e trabalhar” despolitizando, escondendo, diminuindo e até negando a questão étnico-racial, responsabilizando as vítimas e impondo narrativas colonialistas.
Não contam que essas "histórias de sucesso" ocorrem onde a regra é impedir, a nível interpessoal, institucional e estrutural, que aconteçam. Em condições de desvantagem (incluindo material) aberrantes ditadas por instituições racistas.
A Europa, incluindo Portugal e Espanha, impôs-nos o patriarcado branco e impediu-nos de ter propriedade pessoal, terrenos, habitações e bens por vários decretos e leis.
D. João IV, em 1648, decretou a proibição de alugar ou vender casas a ciganos. Decreto ainda válido na má vontade racista de imobiliárias, empresas municipais ou pequenos proprietários, que não vendem nem alugam casas ou terrenos a ciganos.
Ninguém dá trabalho a ciganos. Nunca nos integraram na função pública e ainda acabam com as feiras, mudando-as de local ou extinguindo-as, favorecendo as grandes superfícies e forçando-nos ainda mais à precariedade.
Condenaram-nos às galés, separando famílias, e fizeram-nos remar nas suas embarcações e armadas e assim morrer nas suas guerras e viagens de tráfico humano esclavagista. Portugal decretou o extermínio de ciganos no século XVII, Espanha organizou a Gran Redada no século XVIII, e a Europa toda exterminou milhão e meio de ciganos no século XX. Ainda hoje, governos e o regresso do fascismo promovem expulsões, progroms e assassínios de ciganos – Itália, França, Hungria, Bulgária ou Eslováquia.
Criámos o fado e o flamenco, reconstruímos Lisboa, médicos visitavam-nos para aprenderem como tratar doenças e até fracturas. Mas nunca nos referem no fado, nem contam as nossas contribuições e invenções. Impondo-nos antes um apartheid, mantendo-nos segregados.
Forçam-nos ao nomadismo, expulsando-nos a bastão a cada 48 horas (do Ribatejo ao Algarve). Atiram-nos em terrenos impróprios para viver, em contexto de acampamento ou habitação auto construída. Em condições insalubres, sem água, sem electricidade, sem condignidade. Sem acesso a serviços públicos (bairros do Prado/Braga, da Torre/Loures, do Pombal/Beja ou Cerro do Bruxo/Faro). Em bairros camarários, construídos com as piores das vontades, dos materiais e das arquitecturas, amontoam-nos em locais ventosos, na periferia e/ou próximos a vias rápidas ou outros viadutos. Sobrelotados. Sem locais verdes e de lazer. (bairro da Marinha/Ovar, aldeia Sanakay/Faro, Pedreiras/Beja, Ameixoeira/Lisboa). E em propriedade privada destroem as nossas próprias casas (Santo Aleixo da Restauração/Moura).
Para nós, o regime ditatorial colonialista – racista, patriarcal e capitalista – mantém-se em vigor, impondo-nos modelos políticos e sociais onde, se não fores homem, branco ou rico, a tua voz não tem valor ou credibilidade, os teus interesses não são tão importantes, e o teu sofrimento, a tua perda, a tua discriminação, a tua vida é insignificante: és até mesmo dispensável.
Não dás votos, antes fazes perder. Não valorizas o imóvel, antes desvalorizas.
E a lei, forte para nos perseguir, é fraca para nos proteger. Sem nenhuma consideração para connosco, mas com toda a tolerância com o racismo e com o fascismo.