Confiança pessoal é mais determinante do que laços familiares

Pode não haver conflito de interesses nem ser um sinal de clientelismo, mas chamar a família para o Governo sinaliza a fragilidade do sistema de recrutamento de novos quadros para a política.

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Não foi propriamente uma novidade, mas na última quinta-feira, um pai e uma filha e uma mulher e o seu marido sentaram-se na reunião de Conselho de Ministros presidida por António Costa. Mariana Vieira da Silva já costumava assistir à reunião, como secretária de Estado Adjunta do primeiro-ministro, mas desta vez sentou-se numa cadeira de ministra, como o seu pai, António Vieira da Silva. Já lá estavam, desde 2015, Ana Paula Vitorino e Eduardo Cabrita, que são casados. Os quatro ocupam lugares de destaque na hierarquia do Governo e têm assento em quatro das 18 cadeiras da reunião.

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Não foi propriamente uma novidade, mas na última quinta-feira, um pai e uma filha e uma mulher e o seu marido sentaram-se na reunião de Conselho de Ministros presidida por António Costa. Mariana Vieira da Silva já costumava assistir à reunião, como secretária de Estado Adjunta do primeiro-ministro, mas desta vez sentou-se numa cadeira de ministra, como o seu pai, António Vieira da Silva. Já lá estavam, desde 2015, Ana Paula Vitorino e Eduardo Cabrita, que são casados. Os quatro ocupam lugares de destaque na hierarquia do Governo e têm assento em quatro das 18 cadeiras da reunião.

O burburinho em torno das famílias no Governo foi retomado há exactamente uma semana, quando os novos governantes foram empossados no Palácio de Belém. “Pela primeira vez na história de Portugal, senta-se marido e mulher e pai e filha no Conselho de Ministros”, notou Rui Rio. “Isto não é o ‘Tudo em família’. Isso era uma soap opera”, acrescentou Paulo Rangel, candidato do PSD ao Parlamento Europeu, criticando a “cultura de um certo relaxamento” a que se assiste. “É uma remodelação em família”, concordou Pedro Santana Lopes.

Mérito próprio

Do lado dos que consideraram o assunto um não-caso colocou-se Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente da República, ele próprio filho de um ex-governante (ao lado do qual nunca exerceu política) e irmão de um ex-deputado, encerrou o tema com duas palavras: “mérito próprio”. E justificou: “Foi esse o reconhecimento que foi feito, e eu aceito-o como bom, ao fim destes anos em que pude testemunhar a qualidade das pessoas.”

Para Marcelo, acresce que a situação não tem novidade nenhuma. “A situação é exactamente a mesma. Já vinha da posse dada ao Governo pelo meu antecessor. Já naquela ocasião havia dois ministros que, pelo mérito próprio, sendo embora cônjuges, tinham assento no Conselho de Ministros, e já havia um ministro e uma secretária de Estado que, pelo mérito próprio, eram pai e filha com assento em Conselho de Ministros”.

António Costa Pinto é investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e mostrou interesse em discorrer sobre o tema assim que o PÚBLICO o desafiou a isso. “Sem preconceitos e sem demagogia”, pediu apenas. Estudioso das elites, entende que, com a profissionalização da política que hoje existe, “é mais importante para os governantes serem da confiança pessoal e política do primeiro-ministro do que serem elementos da família”.

Já João Paulo Batalha, que lidera a Transparência e Integridade – Associação Cívica (TIAC), refere-se ao assunto como “incidente” e assume que esta remodelação “levanta questões mais complexas sobre a vitalidade da vida política e dos próprios partidos, no que toca aos seus mecanismos de recrutamento e formação de quadros políticos”.

Familismo vs. clientelismo

António Costa Pinto tem uma perspectiva puramente académica da questão do familismo. Reconhece que “pai e filha ainda não tinham aparecido em governos democráticos em Portugal”, mas considera que isso não põe em causa a credibilidade do Governo.

“A democracia portuguesa caracteriza-se por seleccionar a sua elite ministerial a partir da decisão do primeiro-ministro e não do papel do partido”, explica. António Costa nem sequer difere muito de anteriores secretários-gerais do PS.

Em cima disso, o caso da Mariana Vieira da Silva tem uma peculiaridade: o ministro da presidência não é como os outros. “É basicamente o secretário-geral do Governo na dependência do primeiro-ministro. Portanto, neste caso, tratou-se de dar uma dimensão formal àquilo que já era a prática real do funcionamento do Governo. É mais importante para ela ter a confiança de António Costa do que ser filha do Vieira da Silva”, conclui.

O apelido, aliás, pode ser um empecilho. Nos seus estudos sobre as elites, o investigador encontrou muitos casos em que a vocação política era um traço comum na família (clã Soares) e outros em que os filhos optavam por carreiras totalmente afastadas da política (como os filhos de Fernando Rosas).

E ao contrário do que possa parecer, ser filho de alguém não é sempre um cartão de visita. “O filho de Churchill nunca passou de um mero deputado e João Soares só se afirmou muito tardiamente. Uma carreira de sucesso do pai pode prejudicar a ambição política dos filhos”, garante Costa Pinto. E explica ainda que com a profissionalização, os partidos tornaram-se instituições sociais totais, fechadas sobre si mesmas, fazendo com que o activismo político conduzisse à criação de laços familiares, formais ou não formais. Pedro Nuno Santos, por exemplo, casou-se com uma companheira de partido.

Em jeito de conclusão, Costa Pinto distingue familismo de clientelismo. “Na maior parte dos casos, nas democracias modernas esta dimensão familiar foi perdendo os traços de clientelismo”. O que não quer dizer que não existam algumas dimensões de clientelismo, sobretudo ao nível do poder local.

Sinal de alarme

Coisa bem diferente é o amiguismo. Mas sobre isso é João Paulo Batalha, da TIAC, quem fala, recuando a remodelações anteriores e usando expressões como “mentalidade de cerco” ou “trincheira de nepotismo”.

“De alguma forma, o recrutamento (e promoção) de Pedro Siza Vieira, amigo de António Costa, já mostrava esta cultura política de amiguismo e de lealdade pessoal colocada acima da lealdade institucional. É uma mentalidade de cerco que traduz um fosso cada vez maior entre cidadãos e políticos”, alerta Batalha. E continua: “É um sintoma de fragilidade dos processos de recrutamento. Mostra que a política em Portugal é cada vez mais um negócio de insiders, fechado ao exterior e desconfiado de quem venha de fora das bolhas – não só das bolhas partidárias mas dos círculos restritos de confiança dos líderes. Tão restritos que acabam por se tornar círculos familiares.”

O também consultor de comunicação entende que o facto de haver elementos da mesma família no mesmo Conselho de Ministros “não gera, propriamente, conflitos de interesse”, mas acredita que esta remodelação é “mais um sinal de alarme”. “Não sei como a democracia representativa pode sobreviver a esse fosso de desconfiança se os políticos, em vez de se abrirem à sociedade, se cavam numa trincheira de nepotismo e amiguismo”.

Mesmo a questão do mérito, levantada por Marcelo Rebelo de Sousa, coloca dúvidas a João Paulo Batalha. “A questão mais interessante é: Que mérito lhes reconhece António Costa? Mérito de conhecimento dos dossiers, de experiência nas áreas tuteladas, ou mérito de proximidade e confiança política, à entrada de um intenso ano eleitoral?”, questiona-se. Apesar disso, o presidente da TIAC reconhece que “o primeiro-ministro tem o direito de escolher a equipa que entender pelas razões que entender”, mesmo que essa escolha demonstre que nos “estamos a aproximar de um beco sem saída quanto à capacidade dos partidos tradicionais oferecerem respostas (em ideias, em políticas, em protagonistas) às necessidades do país”.

O que João Paulo Batalha lamenta mesmo é o facto de, apelando à memória, não encontrar precedentes noutros países ocidentais, de relações de tal proximidade dentro do Governo. “O caso análogo que me ocorre é o da Guiné Equatorial, em que o Presidente Teodoro Obiang nomeou o seu filho Teodorin vice-presidente”. Batalha reconhece, no entanto, ser uma “comparação injusta” porque o regime político é distinto e António Costa não nomeou ministro ninguém da própria família.