Escolas rurais: para além do fatalismo
Insinua-se sempre que o problema do insucesso está do lado do atraso estrutural da ruralidade, bem como dos que por lá insistem em coexistir. Nunca se reverte o ponto de vista, como às vezes fazem as crianças.
Todas as manhãs, o carro descia a rampa de recuo. Só muitos anos depois entenderia o significado daquela manobra. Elas chegavam com pressa de partir. Estacionado o Renault 5 TL junto ao portão da escola, seguia-se uma hesitação nada solene. Nós, esbaforidos de tanto chutarmos uma lata à procura de um golo, para lá dos postes improvisados entre pedregulhos, dissimulávamos o suor como podíamos e, sobretudo, o medo por nos apresentarmos, naquele estado, para o início de mais um dia de aulas. Elas prolongavam-se dentro do carro, enredadas em contradições ou à procura de um formulário nas respectivas pastas, no qual pudessem solicitar uma porção de vontade para nos ensinarem. Enfim, lá saíam do carro, rostos fechados, uma delas num ligeiro coxear, a outra apertando as têmporas entre os dedos, a enxaqueca iminente. Nesse tempo, os dias naquela escola rural estendiam-se em demasia, por entre as condescendências possíveis, demasiadas correcções a vermelho, muita luta corpo-a-corpo, se é que me faço entender.
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Todas as manhãs, o carro descia a rampa de recuo. Só muitos anos depois entenderia o significado daquela manobra. Elas chegavam com pressa de partir. Estacionado o Renault 5 TL junto ao portão da escola, seguia-se uma hesitação nada solene. Nós, esbaforidos de tanto chutarmos uma lata à procura de um golo, para lá dos postes improvisados entre pedregulhos, dissimulávamos o suor como podíamos e, sobretudo, o medo por nos apresentarmos, naquele estado, para o início de mais um dia de aulas. Elas prolongavam-se dentro do carro, enredadas em contradições ou à procura de um formulário nas respectivas pastas, no qual pudessem solicitar uma porção de vontade para nos ensinarem. Enfim, lá saíam do carro, rostos fechados, uma delas num ligeiro coxear, a outra apertando as têmporas entre os dedos, a enxaqueca iminente. Nesse tempo, os dias naquela escola rural estendiam-se em demasia, por entre as condescendências possíveis, demasiadas correcções a vermelho, muita luta corpo-a-corpo, se é que me faço entender.
Nem sempre seria assim. O Renault 5 TL continuou a descer a rampa de recuo. Nós voltámos a esconder as latas amassadas com o calcanhar, por entre os renques de hortênsias esmorecendo, entediadas, ao longo dos muros toscos que delimitavam o recreio. Aqui e ali, a divisão não deu resto zero e isso foi-nos fatal, embora cada vez menos. As professoras, no entanto, deram em demorar-se pela freguesia. Justificavam-se com projectos extracurriculares. Na verdade, urdiam cumplicidades várias. Ao fim de um tempo, deram em comparecer em dias de festa ou nas festas de cada um, caprichando no vestido e nisso quase competindo entre si, às vezes até se maquilhando. Desconfio até que o padre da freguesia terá notado o esmero de beleza e o desimpedimento de ambas. A pouco e pouco, a Língua Portuguesa e o Meio Físico e Social passaram, mais vezes, a debater-se com interlúdios sobre saberes obstinados de pais e filhos e até de avós, pois os mais velhos ainda dominavam. Sucederam-se os anos (terão sido dez, quinze ou até mais) e houve um dia em que o Renault 5 TL teve dificuldade em arrancar, rampa acima. Revejo essa manobra, a meio de uma tarde de Junho, no último dia de aulas em que ambas leccionaram, naquela escola. Imagino-a, apenas, porque, nesse tempo, já frequentava o ensino secundário. A rampa terá parecido mais inclinada, o atrito do tempo dificultando o avanço, o motor carregando contra ele, engatado numa primeira e a plenos pulmões.
Retorno a essa convicção amiúde, nos últimos tempos. Ainda agora o fiz, quando se discutiu a taxa de reprovação, no primeiro ciclo do ensino básico, em Beja ou em Faro. Há meses, já a isso fora obrigado, ao dar-se o país por surpreendido, embora com distinta moderação, ao descobrir que, a norte, na região do Tâmega e Sousa, se cobre meio mundo, do Irão ao Botswana, no atraso na escolaridade média, por comparação com a capital, como revelou um estudo da Universidade do Minho para a Associação Comercial do Porto. Fi-lo, ainda antes, quando o mesmo país se indignou, de novo piano, piano, ao ser informado da suspensão da autonomia orgânica da Escola do Curral de Freiras, na Madeira. Essas e outras notícias dispersas insinuam sempre que o problema do insucesso está do lado do atraso estrutural da ruralidade ou dos espaços em transição entre o rural e o urbano, bem como dos que por lá insistem em coexistir. Uma fatalidade, portanto. Nunca se reverte o ponto de vista, como às vezes fazem as crianças, questionando se o mal não estará em programas exclusivos, incapazes de encetar um diálogo entre vivências locais e valores universais, de compreender cada comunidade e dar-lhe um sentido na aprendizagem, integrando as experiências dos seus habitantes. E de aos professores ser dada a confiança e o espaço necessários para o fazerem à luz dos conceitos científicos, do cálculo, das definições no dicionário, da história.
A escola do Curral de Freiras reconheceu esse desafio da escolaridade nos espaços não-urbanos, batendo as probabilidades do atraso. Logo foi contida pelo sistema, não fosse tamanho desaforo uma escola do monte bater as outras em altitude e também nas médias da avaliação externa. Há dias, enquanto membro do júri do concurso de inovação educativa “Ousar, Intervir, Melhorar”, na Região Autónoma dos Açores, redobrei esperanças nessa subversão branda das escolas rurais, ao ler o projecto Musicalidades da Língua, da Escola Básica Integrada Francisco Ferreira Drummond. Em vez de assumir o currículo centralista como um dogma, esse projecto propôs-se, com semelhante desaforo ao da escola de Curral de Freiras, a encetar um entendimento entre as metas programáticas e as manifestações musicais e teatrais, por serem os veios invisíveis de uma forte identidade local na comunidade que serve, no concelho de Angra do Heroísmo. Os resultados, não sendo definitivos, já contestam o fatalismo da ruralidade.
Ao terminar a leitura do projecto, não tive como evitá-lo. Recuo àquela tarde quente e húmida dos primórdios do Verão açoriano. Dessa feita não sou só um espectador. Opto por descer a rampa. Encontro as minhas antigas professoras tão imóveis e comprimidas como a chave, prensada na ranhura apertada da ignição. Ao verem-me, uma delas dá à manivela, fazendo deslizar o vidro até ao fundo. Reconheço naquele impulso a falta de ar e um pedido de ajuda. Logo lhes conto as novidades que levo comigo do presente e descanso-as: naquele lugar onde há tantos anos ensinaram, a Escola Básica Integrada Francisco Ferreira Drummond dá agora caminho ao legado que se preparam para deixar. Nenhuma delas se deixa perturbar. Apenas o ar lhes deixou de faltar. O carro avança, por fim, noutro desembaraço, não sem contornar os destroços que sempre se desprendem de uma despedida. Ao cimo da rampa, encontrando a estrada, o Renault 5 TL imita a curiosidade de qualquer estudante. Confrontado com a viagem, não vacila e pede outra mudança.