A coragem política de Emmanuel Macron
Nos mais diversos lugares da França, o Presidente foi capaz de aguentar aquilo que pouca gente conseguiria.
1. É relativamente fácil teorizar o fenómeno dos gilets jaunes. É muito mais difícil enfrentá-los e combater as causas que levaram à sua erupção violenta e inorgânica na sociedade francesa. Durante anos, escreveu-se na melhor imprensa e nas melhores academias sobre as consequências sociais e políticas de uma globalização económica desregulada, permitida pela revolução tecnológica. Sobretudo nas sociedades democráticas e desenvolvidas, essa globalização provocou a estagnação dos rendimentos das classes médias – a esmagadora maioria da população, como sabemos –, compensada em grande medida pela facilidade de acesso ao crédito, que foi permitindo manter o seu relativo conforto durante muito tempo. A crise financeira de 2008 e as suas duras consequências económicas puseram cobro a este estado de coisas, fechando o crédito, acentuando as desigualdades ou deixando-as à vista desarmada, aumentando a distância entre uma camada da população com maior acesso ao conhecimento e à informação, que singrava sem dificuldade neste novo mundo globalizado, e aqueles que foram deixados para trás, ainda presos nas malhas das velhas indústrias produtivas, com menos acesso ao conhecimento e mais distantes dos centros de poder onde as decisões políticas se tomam.
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1. É relativamente fácil teorizar o fenómeno dos gilets jaunes. É muito mais difícil enfrentá-los e combater as causas que levaram à sua erupção violenta e inorgânica na sociedade francesa. Durante anos, escreveu-se na melhor imprensa e nas melhores academias sobre as consequências sociais e políticas de uma globalização económica desregulada, permitida pela revolução tecnológica. Sobretudo nas sociedades democráticas e desenvolvidas, essa globalização provocou a estagnação dos rendimentos das classes médias – a esmagadora maioria da população, como sabemos –, compensada em grande medida pela facilidade de acesso ao crédito, que foi permitindo manter o seu relativo conforto durante muito tempo. A crise financeira de 2008 e as suas duras consequências económicas puseram cobro a este estado de coisas, fechando o crédito, acentuando as desigualdades ou deixando-as à vista desarmada, aumentando a distância entre uma camada da população com maior acesso ao conhecimento e à informação, que singrava sem dificuldade neste novo mundo globalizado, e aqueles que foram deixados para trás, ainda presos nas malhas das velhas indústrias produtivas, com menos acesso ao conhecimento e mais distantes dos centros de poder onde as decisões políticas se tomam.
Assistimos hoje, um pouco por toda a Europa desenvolvida e democrática, à erupção política dessas realidades sociais e económicas, precisamente quando os efeitos mais dramáticos da crise financeira nas economias começaram a ser superados. É quase sempre assim, mesmo que nos consiga apanhar sempre de surpresa. A explosão deste forte mal-estar social faz-se sentir das mais diversas formas. Pode gerar movimentos nacionalistas ou populistas, que cultivam os valores da nação protectora contra os outros, da cristandade, da etnia ou as emoções de quem pura e simplesmente se revolta contra o facto de ter sido deixado para trás. Atinge uma parte significativa das classes médias, aliás, muito mais do que as camadas que são consideradas estatisticamente pobres.
Em França, traduziu-se num forte movimento inorgânico, que ultrapassa as fronteiras partidárias, que aponta o dedo às elites que governam para si próprias, que fez da violência de massas a sua arma preferencial para obrigar a sociedade a olhar para ele. A sua raiva encontrou um alvo preferencial na figura do Presidente – o representante perfeito de uma elite jovem, arrogante, indiferente à vida das pessoas normais, que tinha decidido quebrar o molde da velha política francesa e reformar o país mais irreformável do mundo. Compreende-se. Foi o primeiro grande revés de Emmanuel Macron, que, com 39 anos, chegou à ribalta, viu e venceu de uma forma que deixou as elites políticas europeias de boca aberta. Sem entender exactamente aquilo que representava, fascinadas pelas suas qualidades, atraídas pela sua ambição e pela sua capacidade de se afirmar como a prova viva de que era possível vencer, negando qualquer cedência às tentações nacionalistas, xenófobas, antieuropeias, retrógradas, que desafiavam os partidos do mainstream europeu. Passou a ser uma referência política, tal como Tony Blair já tinha sido para toda a Europa no final do século passado e no início deste. Macron era o anti-Marine, o anti-Orbán, o anti-Salvini e uma espécie de vacina contra o europessimismo. Tinha anunciado ao que vinha: romper com o molde da velha esquerda contra a velha direita e substituí-lo por uma nova oposição entre fechamento e abertura – aos outros ou à Europa. Não foi certamente por acaso que, nas eleições presidenciais de 2017, Marine Le Pen se definiu como a sua antítese, nem que Viktor Orbán ou Matteo Salvini o tenham elegido como o seu verdadeiro “inimigo”.
2. Quando os gilets jaunes irromperam nas ruas de Paris, desafiando abertamente o seu poder e voltando a baralhar o jogo político francês, a primeira tentação das elites mais instaladas foi de um indisfarçável regozijo, com um leve sabor a vingança. A imprensa deu-o como politicamente morto. A tentação de colagem ao movimento foi inicialmente, ainda que brevemente, irresistível. De Jen-Luc Mélenchon a Le Pen, passando pela liderança de “Os Republicanos”. A violência sistemática e a rejeição de qualquer aproximação política levou-os a arrepiar caminho. Não nos discursos a denunciar os erros de Macron, mas na aproximação ao movimento. As sondagens comprovaram que não valia a pena. Socialistas, radicais de esquerda ou centro-direita capitalizaram zero. Le Pen capitalizou sem ter de sujar as mãos. A “República em Marcha” do Presidente aguentou os resultados, mesmo que a popularidade de Macron tenha descido aos confins da tabela habitual dos ocupantes do Eliseu. Provisoriamente. Como se começa agora a ver.
A imprensa, incluindo a de centro-esquerda, lançou-se igualmente numa série de diatribes contra o Presidente, algumas justas, outras já muito gastas, elegendo, mais do que as suas políticas, o seu estilo como o primeiro responsável pela violência social. Conhecemos essas críticas. O Presidente Júpiter, solitário no seu castelo de ameias douradas, distante do povo, arrogante. Verdade? Talvez. Mas foram exactamente algumas dessas características que acabaram por permitir-lhe dar a volta. Já a deu. “Macron recuperou a iniciativa política”, é o que escrevem hoje muitos analistas. Se vai ser capaz de retomar o controlo da política francesa e europeia, ainda ninguém sabe. Mas esse é o mundo em que vivemos: incerto.
3. Apenas alguém com a extrema juventude dos seus 40 anos, com a segurança de quem se acha o “primeiro da classe” e de quem acredita com enorme convicção no caminho que escolheu para restituir à França e à Europa a sua glória perdida, podia fazer o que ele fez. Os mais cínicos diriam – e disseram – que o “grande debate nacional” que resolveu lançar no início de Janeiro era apenas uma saída política muito mais de forma do que de conteúdo. Uma artimanha. Hoje, há já um balanço possível. Em primeiro lugar sobre o próprio. Nos mais diversos lugares da França, o Presidente foi capaz de aguentar aquilo que pouca gente conseguiria: seis ou sete horas de pé, sem intermediários, de mangas arregaçadas, a responder ininterruptamente às críticas, aos insultos, aos problemas, às questões, aos desesperos, expressos das mais variadas formas por muita gente que respondeu ao seu desafio. É preciso ser-se jovem e ser-se mesmo o “primeiro da classe” para aguentar. E é preciso dispor da qualidade que hoje está mais ausente das lideranças europeias: a coragem política. Por ele, já realizou oito debates. No país, já foram organizados 2500 e recolhidas 850 mil sugestões e perguntas. O processo continua até 15 de Março.
4. O veredicto ainda não chegou. A natureza do movimento dos gilets jaunes veio ao de cima, começando a decantar as águas – no movimento e na sociedade. A violência praticada, não como um incidente, mas como um modo de expressão, começa a afastar muita gente. Os ataques anti-semitismo das últimas semanas, que visaram o filósofo judeu Alain Finkielkraut ou cobriram de cruzes suásticas o rosto de Simone Veil, levaram a França a reagir como quase sempre reage: ocupando a rua. Falta saber o que Macron vai retirar do “grande debate nacional” para tentar renovar a sua agenda política. Não se imagina que abandone as reformas, mesmo que algumas se adivinhem ainda mais difíceis num ambiente mais polarizado. Finalmente, as sondagens começaram a subir de forma sustentada.
5. António Costa tem toda a razão quando, na convenção socialista do último fim-de-semana, escolheu três líderes europeus para simbolizar a agenda “progressista” que defende para a Europa. Alexis Tsipras, que converteu um “Bloco de Esquerda” grego numa força política responsável e que foi capaz de ser o primeiro governo europeu a anunciar o seu apoio à adesão da Macedónia do Norte à NATO. Leu bem. O primeiro-ministro sueco, Stefan Lofven, social-democrata, que quer unir uma tradição de boa gestão das contas públicas à recuperação de uma agenda social europeia. Finalmente, Emmanuel Macron que, com todos os seus defeitos e qualidades, é aquilo que mais se aproxima de um líder com uma agenda aberta, ambiciosa e europeia.