Metade dos miúdos ignora a regra de não falar com estranhos

Estudo EU Kids Online analisa hábitos de crianças e jovens, dos 9 aos 17 anos, na Internet e nas redes sociais. 44% dizem que acabam por se encontrar com as pessoas que conhecem na Internet. Mas o risco pode ser uma oportunidade, defende uma das autoras do estudo que integra um projecto europeu.

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Rui Gaudêncio

A recomendação é conhecida e passada de geração em geração: não falar com estranhos. Contudo, mais de metade das crianças e jovens entre os nove e os 17 anos ignora-a e fala na Internet com pessoas que não conhece. Mais: 44% chegam mesmo a encontrar-se com essas pessoas que encontram online. São dados da nova edição do estudo EU Kids Online, que será apresentado na próxima quinta-feira, em Lisboa.

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A recomendação é conhecida e passada de geração em geração: não falar com estranhos. Contudo, mais de metade das crianças e jovens entre os nove e os 17 anos ignora-a e fala na Internet com pessoas que não conhece. Mais: 44% chegam mesmo a encontrar-se com essas pessoas que encontram online. São dados da nova edição do estudo EU Kids Online, que será apresentado na próxima quinta-feira, em Lisboa.

Outras conclusões? 37% das crianças e jovens portugueses entre os nove e os 17 anos contaram que viram, no último ano, imagens de cariz sexual em dispositivos com acesso à Internet (sobretudo) ou noutro local. Esta experiência é mais frequente entre rapazes (44%) do que entre raparigas (29%).

Olhando para os diferentes grupos etários, encontram-se diferenças importantes: 59% dos jovens dos 15 aos 17 anos, por exemplo, disseram aceder a estes conteúdos. Entre os nove e os 11 anos foram 11%.

O estudo fala ainda de sexting, isto é, enviar “mensagens ou imagens” de cariz sexual, conversar “sobre ter relações ou sobre imagens de pessoas nuas a terem relações”. Em 2018, um em cada quatro entrevistados recebeu mensagens sexuais explícitas. É uma subida muito significativa face a estudos anteriores.

O EU Kids Online parte de um inquérito feito a 1974 crianças e jovens portuguesas — metade rapazes e metade raparigas, sendo que a faixa dos 13 aos 17 representa 62% dos inquiridos. O estudo integra um projecto europeu que abrange três dezenas de países que fazem análises semelhantes. Por cá, é levado a cabo pelas investigadoras Cristina Ponte e Susana Batista, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa.

Esta é a terceira vez que o inquérito é feito. Aconteceu em 2010 e em 2014, o que permite fazer comparações. Ao PÚBLICO, Cristina Ponte sublinha a rápida evolução que se verificou, graças ao desenvolvimento dos dispositivos. “Esta geração que respondeu ao inquérito apanhou, primeiro, com o boom da Internet nas escolas — com o programa Magalhães e o e-escolas, por exemplo. Depois, com o desinvestimento tecnológico. E por fim com a chegada dos smartphones. Hoje, toda a família tem. Possivelmente os avós têm tablets e falam com eles por Skype. Toda a sociedade está a mudar e verificam-se mudanças de comportamento”, sublinha a investigadora.

Segurança dos filhos

No que diz respeito ao uso da Internet e das redes sociais, uma das maiores preocupações dos pais é que, através destas, os filhos conheçam pessoas novas e tenham encontros com elas. Temem pela segurança dos filhos, uma questão que não parece preocupar os mais novos, já que mais de metade das crianças e dos jovens contacta pela Internet pessoas que não conhece pessoalmente. O número cresceu velozmente dos 4% em 2010 para os 55% em 2018, entre os rapazes; e de 5% para 50% no caso das raparigas.

Menos de metade (44%) chega a conhecer essas pessoas pessoalmente — mas, comparando com 2014, são muitos mais os que se aventuram. Por exemplo, entre os mais novos, da faixa dos 9/10 anos, há cinco anos apenas 1% arriscavam. No ano passado, três em cada dez fizeram-no.
Estes encontros não são necessariamente uma experiência negativa. Até porque, segundo as investigadoras, há vários estudos feitos com adolescentes que referem que na maioria dos casos os encontros são com jovens da mesma idade.

Oito em cada dez (79%) dizem ficar “contentes” com esses encontros, ao passo que apenas 2% relataram já ter ficado de “algum modo perturbados”. Contudo, há diferenças por idades: a perturbação é expressa por 22% das crianças de nove e dez anos que responderam à questão. Em geral, as raparigas (83%) ficam mais satisfeitas com esses encontros do que os rapazes (74%). Aliás, 24% dos rapazes não fica “nem contente” “nem aborrecido”.

Cristina Ponte defende que a Internet e os meios móveis são parte integrante da vida das crianças e jovens e que, ao contrário do que a maioria dos adultos pensa, os riscos são oportunidades. “Em todas as línguas há um provérbio semelhante ao nosso que diz ‘quem não arrisca, não petisca’. Existe uma cultura avessa ao risco e este pode levar-nos a oportunidades, pois proporciona experiências e faz-nos confrontar quando algo não corre bem, fazendo-nos ganhar resiliência. O desafio para os pais e educadores é de trabalhar as competências sociais e os direitos humanos porque nada disto [a Internet] existe num mundo à parte”, justifica.

Menos portáteis

A grande mudança verificada, desde o primeiro inquérito, foi nos dispositivos usados para aceder à Internet. Se antes a maioria dos jovens portugueses respondiam que tinham portáteis pessoais — aliás, lideravam entre os 25 países europeus inquiridos em 2010, em que apenas 26% acediam através de telemóvel —, em 2018 têm smartphones (87% usam-nos todos os dias para aceder à Internet) e o acesso por computador caiu para 41%.

Só esta mudança — do computador para o telefone — permite fazer mais actividades e durante mais tempo (três horas diárias, em média), como ouvir música (80%), ver vídeos (78%), estar nas redes sociais (73%), fazer trabalhos para a escola (27%) ou ler e procurar notícias online (27%). Estes números quase que duplicaram comparativamente a 2014: nessa altura, 52% ouviam música, 50% viam vídeos e andava nas redes sociais, 21% usavam estes dispositivos para trabalhos para a escola e apenas 10% liam notícias.

Elas começam mais cedo a usar a Internet do que eles. Elas utilizam as redes sociais e comunicam com os amigos e familiares; já eles usam-nas para entrar em grupos com interesses e hobbies comuns e para ler notícias. Cristina Ponte sublinha a importância da leitura de notícias, mas alerta para a possibilidade de os jovens fazerem leituras que “acentuem extremismos ou radicalização ideológica”. Por isso apela para as “responsabilidades que a indústria tem em criar condições de segurança”, assim como para a necessidade de “fortalecer a educação para os direitos humanos”, tanto nas escolas, como nas famílias (e na sociedade em geral).

Bullying e pedidos de ajuda

Quando se pergunta aos inquiridos se tiveram situações que os incomodaram na Internet no último ano, 23% reportam que sim — os mais novos e os mais velhos são os que mais se queixam, assim como mais as raparigas do que os rapazes. De resto, as queixas subiram significativamente em relação aos anos anteriores — por exemplo, entre os mais novos (nove/dez anos), cresceu de 3% em 2014 para 25% em 2018.

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Maria João Gala

Quando algo acontece, prevê-se que peçam ajuda e assim é: 42% recorrem aos amigos e 33% aos pais, apenas 5% falam com os professores. Elas pedem mais ajuda do que eles. Também são elas que, embora não tenham tantas competências tecnológicas, tomam atitudes como bloquear a pessoa, impedindo-a de voltar a contactar. São também elas que apagam mais as mensagens que as incomodam ou mudam as suas definições de privacidade. “Os pais mostram-se mais preocupados com a segurança das raparigas [na Internet], mas até que ponto isso é preciso?”, questiona Cristina Ponte, perante estes dados.

O que também cresceu foi o número de crianças e jovens que diz que sofre de bullying (online e offline) — um em cada quatro queixa-se, quando nos inquéritos anteriores, a média era inferior a 10%. Ou seja, o valor mais do que duplicou. As raparigas (26%) reportam mais esta situação, mas ser alvo de bullying aumentou mais nos rapazes.

Para três em cada dez inquiridos, o bullying ocorre com “bastante ou muita frequência”. Aliás, o online prevalece, ou seja, o ciberbullying.

Além das vítimas, também há agressores entre os inquiridos, os bullies, cerca de 17%, mais eles do que elas. Cristina Ponte defende que, na escola, é preciso trabalhar as emoções em situações de role play, ou seja, em que os miúdos se ponham no lugar do outro. “Eles sabem o que mais magoa por experiência própria. Há uma humilhação pública quando há imagens ou mentiras a circular na Internet”, explica.

E onde ficam os pais? Dão conselhos sobre como usar a Internet em segurança (45%), mas apenas um terço fala com os filhos sobre o que fazem na Internet. Há miúdos que se queixam de ter pouca atenção em casa (32%) e quatro em cada dez declaram que já ignoraram “algumas ou muitas vezes as regras dos pais”. Os que mais respeitam os progenitores são os mais pequenos.